Os acontecimentos do Norte de África enchem os noticiários e a atenção dos que se interessam pelos caminhos que a História vai tomando nos quatro cantos do mundo e como que diante dos nossos olhos. Em rigor e na verdade, os nossos olhos não têm acesso directo à História: alguém no-la vai contando, dia após dia, através de algum ou alguns dos meios de comunicação social, e manda a prudência que nunca nos esqueçamos dessa intermediação.

De qualquer modo, o facto é que a espécie de maremoto que se levantou na Tunísia, saltou para o Egipto, passou para a Líbia, tocou o Iémen e chegará ou não a Marrocos passou a ser o tema dominante, quase exclusivo, das notícias da vida internacional, dos comentadores, dos analistas, dos sábios. De tal modo que desde há semanas ninguém parece lembrar-se do Afeganistão, onde é cada vez mais nítido que os Estados Unidos perdem a guerra, ou da Palestina, onde a arrogância israelita (e a indiferença pelo mínimo decoro) chegou ao ponto de desobedecer publicamente ao patrão USA.

Em contrapartida, se é que a expressão cabe neste contexto, e a julgar pelo que vemos e ouvimos na TV, que decerto não nos mente, os direitos humanos, ou a reivindicação deles, emerge nos países cuja juventude, sobretudo ela, se ergueu para rejeitar na praça pública, em gigantescos movimentos de massas, as autocracias herdadas do passado.

Como é sabido, o surto foi inesperado e por isso gerou surpresas e perplexidades, talvez sobretudo nos velhos, isto é, nos que têm mais de quarenta anos de idade, território etário onde me encontro embora contra vontade. Por falta de integração na modernidade, e mais especificamente na modernidade mediática, faz-me alguma confusão à cabeça que uma revolução vitoriosa, executada pelas massas populares em países do chamado Terceiro Mundo, possa ter sido resultado de convocações pelo Facebook, pelo Twitter ou, mais generalizadamente, pela Net.

Já não me surpreende que o derrube das velhas ditaduras tenha o apoio dos estados que integram o Ocidente Euroatlântico, não apenas porque todos eles são estados muitíssimo democráticos, que quanto a ditaduras nunca quiseram nem vê-las, mas também porque a democracia que os povos agora em ebulição estão à beirinha de conquistar significará decerto aprofundamento e intensificação da Economia de Mercado nesses lugares, progresso este que não tem preço.

Quanto aos jovens que em maioria consubstanciarão as massas rebeladas, ou pelo menos delas terão sido os elementos iniciais, pergunto-me às vezes se muitos deles não terão confundido um pouco o sonho da Liberdade com a apetência do Consumo à mitificada maneira ocidental. Mas estes maus pensamentos resultam decerto da circunstância de eu ainda ser tetraneto do Velho do Restelo, há que ter isso em conta.

De qualquer modo, acontece que a avalanche de notícias do Norte de África e a tensão que ela acaba por suscitar se tornam por vezes fatigantes. Então, para abrandar ansiedades e cansaços, refugio-me por vezes no Mezzo, o canal dedicado à melhor música nas suas diversas modalidades. Se não me engano, o Mezzo já não é o que era e menos ainda o que foi o seu antecessor Muzzik, mas ainda assim quase só por ele vale a pena receber canais por cabo. Ora, aconteceu-me um dia destes que, num desses momentos em que parti para o Mezzo em busca de refúgio e alívio, deparei com a cena final da ópera «Cyrano», adaptada do poema dramático de Rostand, com Plácido Domingo na figura do senhor de Bergerac.

O texto do libreto seguia de muito perto o texto do poema, e eu fiquei ali, encantado não apenas pela música e pela voz do cantor mas também e talvez sobretudo pelas palavras com que Cyrano denuncia a hipocrisia, a corrupção, o apodrecimento.

E aproveito para deixar aqui uma confissão pessoal, se ma permitem: entre Quixote e Cyrano, o meu coração balança, o que é capaz de não ser bem visto porque Quixote é um grande símbolo da humanidade e Cyrano apenas simbolizará o romantismo que reúne no seu panache o lirismo individual e a luta pela integridade social.

Porém, lembro que Quixote era louco e que Cyrano era lúcido. Que por lucidez e coerência Cyrano decide lutar sempre, até ao fim, haja o que houver, apenas porque aquela luta é justa. Dizem-lhe alguns «que é inútil», e ele responde que a «luta é ainda mais bela quando seja inútil» desde que justa, e isso lhe basta.

Dom Quixote que me desculpe, mas em Cyrano de Bergerac há uma outra e maior grandeza.

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Fonte: O Diario.info