O princípio que consiste em espalhar bases militares por todo o planeta tem enfrentado objeções políticas e práticas. Esse sistema fez crescer a hostilidade de muitas populações contra os Estados Unidos, alimentou guerras inúteis e perdidas de antemão no Afeganistão e no Iraque e pode, no futuro próximo, facilitar outras aventuras americanas no Paquistão, Iêmen, Chifre da África e Magreb.

Osama bin Laden justificou os atentados do 11 de Setembro em nome da “blasfêmia” que significava, aos olhos de certos muçulmanos, a presença de bases dos EUA no território “sagrado” da Arábia Saudita. Claramente, essas bases agravaram a insegurança em vez de diminuí-la.

A expansão das forças dos EUA certamente não resulta de um processo inconsciente, mas também não demonstra ser um esquema estratégico muito bem pensado. A responsabilidade cabe, em primeiro lugar, a uma burocracia mal controlada.

No final da Segunda Guerra Mundial, o público americano exigiu a repatriação rápida das tropas estacionadas no exterior e o desmantelamento de um exército cujo número correspondia a um período de guerra. Esse processo foi interrompido pelo aumento das tensões do que viria a se tornar a Guerra Fria.

Pouco mais de uma década depois, a intervenção no Vietnã se traduziu numa ampliação das bases militares no sudeste da Ásia, mas, depois de seu fracasso, as tropas dos EUA abandonaram essa parte do mundo para se concentrar sobre o que viram então como sua principal missão: garantir a Europa contra uma eventual invasão soviética.

Uma nova doutrina militar foi então formulada. O Blitzkrieg baseava-se numa capacidade militar esmagadora, com objetivos claros e retirada rápida, supostamente para garantir o apoio popular que tinha faltado no Vietnã. Os militares dos EUA se opuseram à ideia de se envolver na ex-Iugoslávia, até que a incapacidade da Europa em dar uma resposta às atrocidades cometidas na Bósnia e no Kosovo levou os americanos a liderar uma intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

MILITARES COMO REFERÊNCIA

Como Dana Priest demonstra em seu livro The mission1, a proliferação de bases dos EUA no exterior, que começou nessa época, se desenvolveu de maneira quase desconhecida da mídia e do público. Ela ilustra a crescente influência exercida na Casa Branca pelas forças armadas, donas de enorme orçamento militar, em detrimento da diplomacia e da CIA, com financiamento menor e em estado de pane quanto a ideias para lidar com as crises internacionais. Os militares apresentavam a vantagem de fornecer soluções rápidas e fáceis, cuja aplicação não exigia longas confabulações. Além disso, transmitiam uma imagem adicional, útil tanto no país como no exterior: a de uma América forte e bem organizada.

O sistema de comandos regionais espalhados por todo o mundo, inaugurado pelos militares dos EUA – cada um com seu comandante, capacidade autônoma e meios operacionais potentes – permitiu às forças armadas desempenhar um papel cada vez mais importante na condução da política externa americana. A influência desses comandantes-em-chefe regionais (denominados “CinCs”), que dispõem de recursos consideráveis e tratam diretamente com os líderes políticos e militares dos países agrupados dentro de sua área de comando, ultrapassa rapidamente a dos embaixadores.

Após a chegada ao poder de George W. Bush, o novo secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, queria restaurar o “controle civil dos militares” e conter a burocracia do Pentágono, considerado ineficiente por ele.

A invasão do Afeganistão pelos EUA, em 2001, deu-lhe a oportunidade de concretizar sua ideia de “guerras do futuro”: o envio de unidades especiais superequipadas com alta tecnologia, ofensivas aéreas e a procura de apoios locais, representados neste caso pela Aliança do Norte – comandada, até sua morte, por Ahmad Shah Massoud.

Sob a batuta do secretário de Defesa, os militares continuaram a ganhar força. No Iraque, inspirada na doutrina de “Choque e Terror”, a operação de 2003 permitiu ao Pentágono ter sob controle a administração do país. Isso teve como consequência, imprevista na época, seu mergulho no caos. Foi necessário esperar até março de 2010 para que a estratégia de contrainsurgência do general David Petraeus, baseada na distribuição de subsídios para as tribos “aliadas”, em sua maioria sunita, culminasse em eleições parlamentares.

Mas os iraquianos ainda não encontraram a estabilidade, ao contrário, estão longe disso. O programa do general Petraeus está sendo implementado agora no Afeganistão, com o pouco sucesso que conhecemos.

A proliferação de bases no exterior procura defender os interesses dos Estados Unidos no mundo e tornar mais convenientes suas futuras intervenções militares. Ela reflete a ideologia da “promoção da democracia” que domina a política externa dos EUA desde a presidência de Woodrow Wilson [1913-1921]. Esse sistema provou, de fato, ser um poderoso incentivo para que as tropas dos EUA interviessem longe das suas fronteiras.

Em 1993, Samuel Huntington causou sensação ao afirmar na revista Foreign Affairs que a “próxima guerra mundial” assumiria a forma não de um conflito entre Estados, mas de um “choque de civilizações”2. Para apoiar sua tese, ele apresentou o cenário de uma guerra entre o Ocidente e os países muçulmanos para controlar o mundo. Ele também conjecturou que a China, a “civilização confuciana”, se alinharia com o bloco árabe-muçulmano.

A profecia revelou-se falsa, tão falsa quanto a teoria preconizada por Bush, em 2001, de que o Islã se explicaria pelo ódio que os muçulmanos têm pelas liberdades ocidentais. De fato, o crescimento do fundamentalismo muçulmano é resultado de uma crise interna no Islã. O objetivo dos fundamentalistas islâmicos é purificar as práticas religiosas dos muçulmanos para repelir a influência do Ocidente, não para invadi-lo.

CONVERGÊNCIAS

O nascimento da Al Qaeda se explica por vários fatores convergentes: o forte ressurgimento do fundamentalismo religioso; o fracasso dos países árabes em substituir o conceito de “nação”, antes associada ao Império Otomano, que entrou em colapso na Primeira Guerra Mundial; a divisão colonial do Oriente Médio entre França e Inglaterra e, finalmente, a divisão da Palestina e a criação de Israel.

A política dos EUA, após a Segunda Guerra Mundial, foi a de formar alianças com a Arábia Saudita e o xá do Irã. Em Washington, poucos duvidavam que o Islã fosse uma prática antiquada, que teria o destino de ceder progressivamente seu lugar à modernidade ocidental. Essa visão se baseava na falsa premissa de que todas as civilizações, necessariamente, evoluíam para um destino comum e que os Estados Unidos e seus aliados, nesse sentido, tinham uma vantagem confortável. A ciência, a tecnologia, a cultura e os sistemas políticos não tinham adotado esse caminho brilhante?

Mas isso é esquecer que Roma impôs sua hegemonia à custa de Atenas, que foi precedida, por sua vez, pelas civilizações egípcia, mesopotâmica e persa. É a Bíblia que inventou o conceito de história como um processo linear, levando a um final redentor, que dá sentido a tudo o que o precede. E é sobre este fundo que prosperou o milenarismo dos iluministas, incluindo suas versões modernas e totalitárias, o marxismo-leninismo e o nacional-socialismo.

A utopia que permeia a política externa dos EUA bebe na mesma fonte, especialmente desde a presidência de Woodrow Wilson. É o legado secular da visão dos antepassados peregrinos da colônia da baía de Massachusetts, do Novo Mundo, como a materialização de uma área banhada pela graça do Deus Todo-Poderoso. Uma visão sempre enraizada na cultura política americana.

Para o historiador Andrew Bacevich, o novo militarismo americano não é mais que um derivado do seu milenarismo político, isto é, a ideia de que as boas intenções e os ideais democráticos de Washington acabariam por saltar aos olhos do mundo inteiro.

No início da guerra do Vietnã, observou Bacevich, os americanos “se convenceram que sua segurança e seu bem-estar seriam conseguidos na ponta da espada”3. Eles estavam convictos de que “o mundo em que viviam era mais perigoso do que nunca e deveriam redobrar seus esforços”. O cenário de uma extensão do poder militar para o resto do planeta tornava-se, portanto, “uma prática habitual, uma condição normal, que parecia não admitir qualquer alternativa plausível”.

Os Estados Unidos apresentam, hoje em dia, as características de uma sociedade militarista, onde a demanda por segurança interna e externa supera todas as demais e cuja imaginação política é obcecada por ameaças hipotéticas.

Com um otimismo incongruente, Washington garante que o Iraque está no caminho para a democracia. A administração de Obama parece tentada, também, a retirar as tropas dos EUA do Afeganistão. No entanto, essa opção é rejeitada pelo Pentágono, que está construindo um complexo militar “sustentável” para servir como centro de comando estratégico para toda a região. Mas o Talibã exclui quaisquer negociações de paz até que as forças aliadas deixem o país.

Barack Obama vai ter que fazer uma escolha difícil. Caso decida a favor da retirada, que é a opção formulada por um relatório sobre a estratégia dos EUA no Afeganistão publicado em dezembro último, num momento em que o apoio da opinião pública a favor da guerra está afundando, ele poderá atrair a ira da oposição republicana, mas também, presumivelmente, do Pentágono (que veria nesta retirada uma derrota humilhante). O sistema de bases militares é, de fato, um obstáculo fundamental para qualquer solução na região.

Os Estados Unidos, que possuem um poder de fogo maior que o de todos os seus rivais e aliados juntos, nem sempre reverenciaram a força militar. A Declaração de Direitos (“Bill of Rights”), acrescentada em 1787 à Constituição, afirma, na sua segunda emenda, que “uma milícia bem regulamentada seria necessária à segurança de um Estado livre”. Mas a existência de um exército federal só é mencionada na seção 8 do artigo 1o da Constituição. A cláusula relativa confere ao Congresso o poder para “levantar e manter exércitos, com a reserva de que nenhuma apropriação de dinheiro para esse fim se estenda por mais de dois anos”.

O artigo II da Constituição, consagrado ao Poder Executivo, limita-se a afirmar que “o presidente será o Comandante-em-chefe do Exército e da Marinha dos Estados Unidos, assim como das milícias dos diversos Estados, quando convocadas ao serviço ativo dos EUA”. A Constituição é um documento profundamente antimilitarista, refletindo a oposição popular à presença militar britânica nas colônias. Até a metade do século XX, a opinião pública norte-americana manteve-se hostil ao exército. Durante a eclosão da Segunda Guerra Mundial, as tropas dos EUA tinham apenas 175 mil homens.

A rápida desmobilização iniciada em 1945 foi suspensa apenas por causa da Guerra Fria, e o princípio de um exército de alistados só foi abandonado após a intervenção no Vietnã. Assim, até a década de 1970, o exército dos EUA era “cidadão”, e muitos oficiais saíam da reserva ou do recrutamento.

Ao substituí-lo por um exército profissional, o poder político ganhou um instrumento de poder sobre o qual o povo não tem mais controle. Ao mesmo tempo, a influência do “complexo militar-industrial” tem crescido consideravelmente. A defesa e segurança formam hoje o setor mais importante da economia industrial dos EUA. Seus interesses são tão colossais que eles se impõem tanto no Congresso como no governo.

Há dois séculos e meio, o conde de Mirabeau escreveu sobre o país mais poderoso na Europa da época: “A Prússia não é um Estado que possui um exército, é um exército que conquistou uma nação”. Esta descrição aplicaria-se muito bem aos Estados Unidos de hoje.

Entre o início da Guerra Fria e a atual guerra no Afeganistão, não tem faltado oportunidade para os Estados Unidos se envolverem em combates: guerra da Coreia, guerra do Vietnã, invasão do Camboja, operações militares no Líbano, Granada, Panamá, República Dominicana, El Salvador (indiretamente), Somália (primeiro sob mandato da ONU; em seguida, através da Etiópia), duas invasões do Iraque e uma do Afeganistão. Com exceção da primeira guerra do Golfo, nenhuma dessas expedições mereceria o título de vitoriosa.

Dentro de suas próprias fronteiras, os Estados Unidos permanecem invulneráveis a qualquer ataque convencional. Não se pode dizer o mesmo de suas tropas posicionadas nos quatro cantos do mundo.

A segurança do país poderia ser mais bem garantida se a sua política externa finalmente virasse a página de 50 anos de intervencionismo e negociasse a retirada do Afeganistão e do Iraque sem se intrometer de forma agressiva nos assuntos dos outros. Essa mudança viria, claramente, com um alto custo político no país e no exterior. Chegou o momento para que os líderes desse país fixem um novo curso. Será que eles terão vontade ou capacidade política e ideológica?

William Pfaff

é colaborador da New York Review of Books e autor de inúmeros livros, entre eles The irony of manifest destiny: the tragedy of American Foreign Policy, Walker Books, Nova York, 2010.

1 The mission, Norton, Nova York, 2004.

2 “The Clash of Civilizations?”, Foreign Affairs, Tampa, verão de 1993.

3 The New American Militarism: how Americans are seduced by war, Oxford, New York, 2005.

Fonte: Le Monde Diplomatique