Mil fiéis celebravam o ano-novo na igreja copta de Todos os Santos, em Alexandria, quando, minutos após a meia-noite, um homem-bomba explodiu às suas portas. A detonação, além de fazer 25 vítimas fatais e ferir 97 dentro do templo cristão, destruiu automóveis e danificou a mesquita do outro lado da rua, onde feriu oito muçulmanos. O terrorista pretendia entrar na própria igreja e matar ainda mais fiéis, mas explodiu ao ser barrado pelos policiais que guardavam a entrada. A comunidade copta – um antigo ramo do cristianismo independente tanto da Igreja Católica quanto da Ortodoxa – reagiu com protestos massivos e o governo pôs o Egito em estado de alerta, receando novo atentado no Natal copta, 7 de janeiro.

A gravidade do atentado não é atestada só pelo número de corpos, mas também por se dar em uma igreja em frente a uma mesquita. No Egito, como na Síria, Iraque e Líbano, importantes comunidades cristãs continuam a existir depois de mais de 1.300 anos de domínio muçulmano. Um atestado da relativa tolerância do Islã do passado em relação às minorias religiosas, mantida mesmo após as Cruzadas – em contraste com a Reconquista cristã, que varreu muçulmanos da Península Ibérica e da Itália.

Esse quadro, porém, está mudando. No Egito, a pressão contra os cristãos coptas, algo entre 10% e 20% da população, cresceu desde 1952. Com os otomanos e a monarquia egípcia, a camada superior da minoria copta prosperara a ponto de deter cerca de metade da riqueza do ­país, mas a revolução de Gamal Abdel Nasser nacionalizou terras e empresas e os ­marginalizou como um obstáculo ao nacionalismo pan-árabe. Paradoxalmente, o laicismo nasserista submeteu os coptas a mais restrições que os antigos califas “comandantes dos crentes” – por exemplo, proibiu-os de construir ou mesmo restaurar igrejas sem autorização.

Os coptas, como algumas outras minorias cristãs da região, tendem a identificar-se com os povos pré-islâmicos do Oriente Médio dos quais descendem – egípcios faraônicos, fenícios, arameus, caldeus, assírios – em oposição aos “invasores árabes”, mesmo se seus vizinhos “árabes” se distinguem deles apenas pela decisão de seus antepassados de se converter à religião dos conquistadores vindos do deserto. Juntamente com a prosperidade sob o antigo regime, isso os tornou alvo de desconfiança a quem sonhava unificar todo o mundo árabe em uma República Árabe Unida.

A tendência a tratá-los como bodes expiatórios acentuou-se com Anuar Sadat, que se afastou do nacionalismo de esquerda de Nasser e aproximou-se dos fundamentalistas da Fraternidade Muçulmana, enquanto se reconciliava com EUA e Israel.­ A primeira onda de violência contra os coptas viu-se em 1972. Nove anos depois, 81 coptas foram massacrados, um sacerdote degolado depois de recusar a conversão ao Islã. O papa copta, Shenouda III, protestou recusando-se a receber emissários do governo, que reagiu confinando-o em um monastério no deserto e tentando forçar o clero a eleger um substituto. Mesmo assim, Sadat foi morto no mesmo ano por uma facção mais extremista do fundamentalismo, que não aceitou a paz com Israel.

Seu sucessor, Hosni Mubarak, restaurou o papa copta em 1985 e aliviou certas medidas discriminatórias, mas outras ondas de violência contra os cristãos em 1992, 1997 e 2000, enquanto crescia o prestígio da Fraternidade Muçulmana, principalmente por oferecer os serviços sociais abandonados pelo governo com as reformas liberais dos anos 1990. Na Páscoa de 2009 e janeiro de 2010, outros atentados vitimaram cristãos. Em abril, uma multidão de 3 mil muçulmanos destruiu casas, lojas e carros de coptas.

Mubarak cortejou o fundamentalismo popular fazendo eliminar (com o absurdo pretexto da gripe “suína” H1N1) todos os suínos do país em 2009, o que deixou na miséria seus criadores cristãos. Por outro lado, bloqueou o acesso da Fraternidade Muçulmana ao poder. Mais de 6 mil de seus membros foram presos em 2010, 44 mil estudantes do grupo foram assediados pela polícia e as eleições de dezembro foram manipuladas para excluir o grupo do Parlamento, no qual tinha sido, desde 2005, o principal bloco de oposição.

Ao contrário do Egito de Sadat e Mubarak, o Iraque de Saddam Hussein tratou muito bem sua minoria cristã, tanto que teve como segunda figura mais importante do regime o vice e chanceler Tariq Aziz, cristão de rito caldeu. A invasão estadunidense deflagrou, porém, os ódios sectários e os cristãos tornaram-se, também ali, bodes expiatórios, apanhados no fogo cruzado entre fundamentalistas sunitas e xiitas. O ramo local da Al-Qaeda atacou a catedral católica siríaca de Bagdá em 31 de outubro e deixou 58 mortos.

O pretexto foi o tratamento dado no Egito a duas esposas de sacerdotes coptas, que, segundo eles, abandonaram o cristianismo e se converteram ao Islã. O governo as capturou e devolveu à comunidade copta para acalmá-la. Os cristãos, por sua vez, alegam que elas foram sequestradas por muçulmanos e disseram (depois de pressionadas pelos sacerdotes) nunca terem se convertido. Feministas do Egito dizem que, nesse incidente, os muçulmanos provavelmente têm razão. Por estranho que possa parecer a um ocidental, não é raro que nesse país cristãs busquem a conversão ao Islã para escapar a casamentos infelizes arranjados e forçados pela tradição copta.

Deve-se notar que a Fraternidade Muçulmana condenou os ataques nessa ocasião e voltou a fazê-lo agora. O atentado de Alexandria foi, provavelmente, obra de uma célula local da Al-Qaeda que não envolve a corrente principal do fundamentalismo egípcio. Ainda assim, é um sinal de que no Egito, como no Paquistão, Líbano, Palestina e Turquia, está em crise o Estado laico, identificado com o elitismo, o neoliberalismo e à submissão aos interesses ocidentais – quando não foi desastradamente eliminado pela ação dos EUA, como no Iraque. Dada a incapacidade do Ocidente de oferecer políticas alternativas para a região, é questão de tempo para que a disputa do poder passe a se dar apenas dentro do espectro que vai de fundamentalistas moderados, como o turco Recep Tayyip Erdogan, a extremistas como o saudita Osama bin Laden – e restará ao mundo apenas torcer pelos primeiros.

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Fonte: CartaCapital