Dentro de alguns dias, o presidente Lula será um ex-presidente. Deixa o poder, após oito anos, com o feito inédito de eleger um sucessor que ele próprio escolheu.

Despede-se com taxas elevadas de desaprovação da mídia e com históricas taxas, em torno de 80%, de aprovação da sociedade. Quem se engana?

Lula, um ex-torneiro mecânico, pernambucano de baixa escolaridade, driblou o provável destino ao escapar do Nordeste para o Sudeste como migrante pau de arara.

Em São Paulo, travou lutas históricas no sindicalismo do ABC paulista, no fim dos anos 1970, e terminou encarcerado, suspeito de ser um perigoso subversivo. Havia uma evidência sólida, uma barba espessa, naquele líder operário que os militares trancafiaram por uns tempos sob aplauso de muitos patrões.

Fundou o Partido dos Trabalhadores. Nome que, supostamente, expressava uma representação de classe. Teve apoio fundamental da Igreja Católica, de movimentos sociais, de intelectuais e de ex-militantes da esquerda armada. Contou, também, com a rejeição quase absoluta do Partido Comunista Brasileiro. O velho partidão que veio a falecer antes mesmo que o Muro de Berlim ruísse, sem conseguir sua principal meta: organizar os liberais para que fizessem a revolução burguesa. Talvez por cacoete, nascido dessa aproximação tática, muitos sobreviventes tornaram-se força auxiliar da direita e, juntos, fizeram de Lula o principal adversário. Pura reação do fracasso. Afinal, ao dar vigor ao capitalismo brasileiro, Lula fez, ao modo dele, o que os comunistas brasileiros tentavam. Há um conteúdo revolucionário nesse processo.

Para entrar no seletivo “Clube de Eleitos” de ex-presidentes, era um concorrente absolutamente improvável. Recebeu “bola preta” dos eleitores por três vezes. Por preconceito, o clube só dava acesso, pelo voto popular, a quem tinha diploma universitário ou espada de general. Quando Lula foi eleito, em 2002, aquele círculo restrito de ex-presidentes, em 103 anos de República, era composto de 12 advogados, dois militares, um médico, um economista e um sociólogo.

Agora o “Clube de Eleitos” terá um torneiro-mecânico como associado, que, mais do que ex-presidente, tornou-se um protagonista brasileiro no século XXI.

Foi esse presidente-operário que tirou muitos milhões da miséria absoluta. Impôs uma política externa altiva para o País e, principalmente, criou um novo parâmetro no processo de desenvolvimento do Brasil: é possível crescer distribuindo renda.

O pior de Lula talvez tenha sido o fim total de algumas ilusões, seguido pelo aprendizado dos truques políticos, naturais do poder, sobre os quais nunca falará publicamente porque, em geral, nos horroriza. Mas foi isso, certamente, que surpreendeu os adversários: esperavam que o presidente “chutasse o balde” e perdesse o controle da base de apoio na sociedade que o elegeu e no Congresso também escolhido pela sociedade.

Em 2005, durante o episódio conhecido como “mensalão”, resistiu ao “golpe branco” tramado pela oposição e armado em dois lances: o impeachment fracassado, seguido de igual fracasso da pressão persuasória para fazê-lo desistir do segundo mandato.

Lula não se rendeu à principal perversão do poder: o continuísmo além da regra. Há evidências, ainda agora, dos momentos de ambiguidade que viveu: sair ou ficar?

Superar a vontade de continuar dá a dimensão humana da decisão que tomou.

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Fonte: CartaCapital