Há alguns anos, em 2002, fazendo meu doutoramento, eu participava de um seminário que, nas dependências do Colégio Internacional de Filosofia, em Paris, discutia o futuro da Amazônia. Uma das estrelas do evento era o então senador pelo Amapá, João Capiberibe. Em determinado momento, justamente durante sua intervenção, observamos alguém subir ao palco e interrompê-lo. O fato grave o senador Capiberibe informou à platéia: vinha de ter seu mandato senatorial cassado. Riu-se, disse que iria recorrer e fez uma piada ou duas sobre o assunto. Se não me engano, algo como:

“Viram? Não posso nem sair do Brasil, que eles fazem isso!”. Retornou logo à sua explanação e a platéia, um tanto estupefata, deve ter imaginado que a política, na Amazônia, emparelhava ao realismo fantástico mais radical. Recordo a indignação da ilustre geógrafa Bertha Becker, sentada bem à minha frente e que passou o resto da conferência indagando à sua vizinha de assento, aos cochichos, sobre o absurdo da situação.

Capí já era um mito. Ou algo próximo. Um sujeito com fama de incorruptível e de irredutível. Com fama de cabeça dura. Ex-prefeito de Macapá e ex-governador do Amapá, primeiro governante amazônida realmente comprometido com a transparêmncia das contas públicas, sustentabilidade ambiental, primeiro governante amazônida realmente socialista. O seu PDSA: Programa de Desenvolvimento Sustentável do Amapá, elaborado em 1995, era uma ação pública consistente, impactando na formação de cadeias produtivas ambientais e garantindo a preservação de 98% da paisagem natural do seu estado.

O que nem o senador e nem a platéia ali presentes sabiam é que Capí teria seu mandato, de fato, cassado. Sob a acusação, mentirosa e estapafúrdia, de comprar dois votos, por 32 reais e, ainda assim, pagos de duas vezes…

Nem ele e nem mais ninguém, ali presentes, poderiam imaginar que se seguiriam oito anos de degredo político, tal como um novo exílio, igual ao que o levou, durante a ditadura militar, a um périplo pela Bolívia, Chile, Canadá e Moçambique.

Quanto a mim, não poderia imaginar que as voltas que o mundo dá me colocariam, novamente, ao lado do senador, no exato e simbólico momento em que o TRE derrubou o pedido de rejeição de sua candidatura ao Senado Federal, demandada com base da lei da Ficha Limpa pelo fato de ter sido cassado em 2002 e, com esse gesto, criou as condições para a sua eleição e para o seu retorno à grande cena política.

Era uma noite de quarta-feira. Estávamos na sua casa, com computadores pessoais e telefones sempre em alerta. Éramos cinco pessoas: Capí, o advogado Bermerguy, sua filha Luciana Capiberibe, o marqueteiro Walter Júnior e eu. Eu estava ali com a missão de ajudar na construção da estratégia política de sua candidatura, bem como na de seu filho, Camilo Capiberibe, candidato ao governo do estado.

Os votos dos magistrados iam sendo pronunciados com a lentidão habitual e iam ecoando na Internet e pelos telefonemas. Com o terceiro voto favorável veio a confirmação da vitória. Capí comemorou contidamente o resultado. O mesmo gesto que vi repetir tantas vezes ao longo da campanha que, então, apenas começava: o fechamento do punho e uma ligeira vibração do antebraço e a mesma palavra que tantas vezes repetiu ao longo da campanha: Vencemos!

Com Capí não há lugar para verbos individualizados: “Vencemos!”, e nunca “venci”. Os telefonemas, então, começaram a se multiplicar. Todos os celulares e telefones fixos da casa começaram a soar, seguidamente. Muitos desejavam cumprimentar o senador pela vitória. Logo, em sobrecarga, todas as conexões à internet caíram. Um processo político novo iniciava no Amapá. Era como se o retorno de Capiberibe, temido por seus muitos adversários, sobrecarregasse as tensões presumíveis, os acordos feitos e as demais candidaturas colocadas.

A certo momento, a filha Luciana estendeu seu telefone para Capí: “É a Janete”. Capí atendeu a esposa, que acompanhava de Brasília a votação. Ao mesmo tempo, do lado de fora da casa, passava um carro buzinando como um louco. Possivelmente um anônimo, prestando sua homenagem ao senador. Nesse momento recordei do que me tinham dito, dias antes, quando cheguei ao Amapá para ajudar na campanha de Capí e na de Camilo Capiberibe, seu filho, para o governo: não precisa dar endereço, basta dizer ao motorista do táxi para levá-lo até a casa do Capí… O senador não perdia sua condição de mito.

Capí retirou-se por alguns minutos para tomar um banho, antes de seguirmos todos para a sede do PSB, para onde a militância começava a rumar. Muita gente, nas ruas, tomava o mesmo caminho. A certo momento Capí desligou seu telefone e permaneceu em silêncio. O olhar contemplando o futuro mais do que o presente. Um retorno, uma volta, um recomeço. Acabava ali seu segundo exílio.

O que representa a vitória de Camilo Capiberibe ao governo do Amapá

A vitória de Camilo Capiberibe ao governo do Amapá tem uma dimensão política com efeito sobre toda a Amazônia. Desenvolvo a seguir algumas considerações sobre esse significado:

1. Sua eleição reconstrói a perspectiva geopolítica de uma Amazônia com dois projetos governamentais de esquerda, ambos com grande compromisso com a sustentabilidade ambiental e social: Acre e Amapá, o primeiro com o PT e o segundo com o PSB. Os dois estados têm, aproximadamente, o mesmo tamanho e população. Iniciaram juntos a mesma caminhada, mas o Amapá interrompeu a sua por oito anos, durante os dois mandatos de Waldez Góes. Um período que resultou num colapso escandaloso de corrupção e que, dessa forma, mostra o equívoco do caminho tomado. Porém, o Acre atual tem dado sinais de cansaço desse processo. A votação, superior para Serra do que para Dilma e a eleição apertada de Tião Viana (PT) poderão posicionar o Amapá na linha de frente da esquerda na Amazônia.

2. Em relação aos dois grandes estados amazônicos, Pará e Amazonas, as expectativas são de polarização política com o Amapá. Os dois grandes serão governados por partidos sem compromisso maior com a sustentabilidade ambiental e social. Ainda que Omar Aziz, novo governador do Amazonas, pertença à base aliada do governo Dilma, seu papel como liderança regional é extremamente vulnerável, sobretudo diante do peso do ex-governador, Eduardo Braga, agora no Senado. Por outro lado, o retorno de Simão Jatene ao governo do Pará poderá representar o retorno de uma política de licenciamentos ambientais movida por interesses partidários.

3. Camilo representa um grupo de oposição irredutível e histórica. Esse grupo derrota um projeto fisiológico de poder representado pelo senador Sarney e por seus braços amapaenses, alguns dos quais muito próximos, como o senador não-reeleito Gilvan Borges e o candidato derrotado ao governo, Lucas Barreto; e outros menos próximos, como o ex-governador e candidato também derrotado ao Senado, Waldez Góes, o governador atual Pedro Paulo e o candidato derrotado ao governo, Jorge Amanajás. Em eleições anteriores todos eles estiveram juntos e a única oposição consistente foi o PSB dos Capiberibe, devendo também ser considerado que mesmo o PT, agora coligado ao PSB, fez parte do governo Waldez.

4. Camilo é uma liderança nova, mas é bem preparado. Tem inteligência política, pessoal e emocional. Essa condição, associada a um cenário que projeta o PSB como o partido da base de apoio ao governo Dilma com o maior número de governadores, permite que Camilo postule uma projeção de liderança na cena amazônica.

5. Camilo pertence ao partido de Eduardo Campos, o governo reeleito de Pernambuco numa vitória esmagadora e que deu a Dilma uma vitória retumbante em seu estado: 76 a 24% de Serra. Estrela em ascensão na política nacional, Campos tem algo em comum com Camilo: um projeto de desenvolvimento que tem na estrutura portuária uma de suas peças fundamentais. O projeto de recuperação do porto de Santana, no Amapá, é um dos carros-chefe do programa de governo de Camilo e decorre de lições aprendidas com o projeto de valorização do porto de Suape, em Pernambuco, uma ação central da gestão Campos. Aliás, Eduardo Campos visitou Camilo no segundo turno e com ele discutiu longamente seu projeto portuário.

6. A vitória de Camilo desmoraliza um projeto também fisiológico vindo do PSOL, e nisso confronta esse partido, pela primeira vez, seriamente, com suas contradições internas. Refiro-me ao senador eleito pelo PSOL do Amapá, Randolfe Rodrigues. Sua participação intensa na campanha do candidato do PTB, também apoiado por José Sarney, juntamente com suas declarações contraditórias, foram amplamente criticadas por outros diretórios estaduais, bem como por expoentes do PSOL em todo o país. Essa posição do senador eleito gera não apenas desconforto, mas um efeito simbólico grave para o PSOL, que, mais cedo ou mais tarde, deverá ser chamado a responder por isso.

Fonte: Carta Maior