No despertar desta última sexta-feira pela manhã, certa normalidade pairava na capital do Equador, salvo pelo perímetro de segurança organizado em torno do palácio presidencial, no dia seguinte a uma rebelião policial qualificada pelo Presidente Rafael Correa de tentativa de golpe de Estado.

Os acontecimentos da véspera trouxeram à memória dos equatorianos lembranças dolorosas, de um país que conheceu 8 presidentes diferentes nos últimos 13 anos, além de várias crises desde a democratização em 1979. O Equador é uma das democracias mais instáveis da América Latina, que tira o essencial de suas riquezas da exploração do petróleo. Está entre os mais pobres e mais desiguais do continente. A instabilidade política é um obstáculo constante ao crescimento econômico durável no país. O socialista Rafael Correa, eleito em 2006 após derrotar o homem mais rico do país, trouxe a esperança de consolidar as instituições democráticas. Foi reeleito em 2009, após aderir ao socialismo do século XXI.

No plano interno, a multiplicação dos programas sociais consolidou sua popularidade no país em que 38% da população vive abaixo do limiar da miséria, rendendo-lhe também inimigos políticos. Nos últimos meses, a queda do preço do petróleo, a fuga dos investimentos e o declínio da produção da empresa estatal PetroEcuador contribuíram para a estagnação econômica e a queda da popularidade do governo. Paralelamente, o aumento da hostilidade das elites e dos partidos tradicionais tornou difícil encontrar um consenso necessário para sair da crise. Ainda assim, Rafael Correa demonstrou ser capaz de mobilizar a sociedade em seu favor, frustrando a possível tentativa de golpe institucional.

Fatos como esses sucedidos no Equador não demonstram a imaturidade política da América Latina. Ao contrário, talvez desenhem a resistência de setores hegemônicos em reconhecer um processo de emancipação democrática progressista na região que possui mais da metade de todos os recursos naturais do planeta. Alguns fatos interessantes podem servir para embasar essa conclusão. No contexto do comércio internacional, a Cúpula das Américas de 2005 assistiu ao rechaço do projeto norte-americano de criação da Área de Livre Comércio da Américas – ALCA, dando início à ofensiva dos EUA de negociação de tratados bilaterais de livre-comércio com vários países da região.

Paralelamente, o bloqueio da Rodada de Doha sob a liderança do Brasil e da Índia representa o despertar e a articulação dos países em desenvolvimento para enfrentar o engessamento econômico que lhes foi imposto sem resistência à época da criação da OMC. Por outro lado, nas negociações que se seguiram à agressão do Equador pela Colômbia em 2008, os Presidentes latino-americanos não recorreram à velha OEA, mas ao Grupo do Rio, resultando na condenação da intervenção colombiana.

Em 2008, Honduras e México, países tradicionalmente aliados aos EUA, apoiaram a volta de Cuba à OEA, enquanto os EUA mantêm o embargo econômico. Em 2008 e 2009 respectivamente, Honduras e Equador juntaram-se a ALBA, sendo que este cancelou a concessão da base de Manta aos EUA. A partir dos anos 2000, portanto, há um provável esforço dos setores hegemônicos em conter a virada progressista na América Latina, com golpes de Estado na Venezuela, em 2002, em Honduras, em 2009 e agora no Equador em 2010, além da reativação da IV Frota Naval dos EUA, e do aumento de sua ajuda militar à Colômbia.

Em resposta à tentativa de golpe no Equador, vários Estados do continente, reunidos extraordinariamente no âmbito da Unasul em Buenos Aires, expressaram apoio a Rafael Correa. Nenhum resquício de imaturidade política, mas a prova da união da América do Sul em torno dos valores da emancipação democrática, incluindo, ao lado da consolidação da democracia no interior de cada Estado e do respeito à autodeterminação dos povos, a multipolarização e a conseqüente democratização das relações internacionais no âmbito latino-americano.

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Doutora em Direito Internacional pela USP e Professora da UniBrasil e da UniCuritiba

Fonte: Carta Maior