Nomes como José López Rega, Licio Gelli, Alberto Vignes e Emilio Massera têm descendência política de forte presença atual. Os quatro integraram uma organização fascista internacional, a Propaganda Dois [loja maçônica italiana], e montaram a repressão na Argentina durante o período de José López Rega, a Triple A e o Estado terrorista. Um de seus descendentes, Esteban Caselli, que já era um jovem ativo em 1975, dirige as operações internacionais da Soberana Ordem de Malta, ligada à ultra-direita do Vaticano. Outro jovem ativo de 1975 segue, por enquanto, na carreira: o ex-embaixador da Argentina na Venezuela, Eduardo Sadous, que em uma de suas diversas formas de apresentação coloca seu cargo de chanceler da Soberana Ordem de Malta na Argentina.

O quebra-cabeças que tem Sadous como uma de suas peças faz parte de um tabuleiro que convém repassar peça por peça e com paciência, pois se passaram 35 anos, mas o jogo ainda não terminou.

Juan Perón morreu no dia 1° de julho de 1974. A sua morte acelerou a atividade da Triple A, que já havia começado a funcionar. A Aliança Anticomunista Argentina era o grupo terrorista paraestatal encarregado de amedrontar e matar os críticos do grupo encabeçado por José López Rega dentro e fora do peronismo. López Rega chegou a Argentina como secretário pessoal de Perón. Adquiriu maior poder quando, em 13 de julho de 1973, após somente 50 dias, o então presidente Héctor Cámpora foi obrigado a renunciar. Também renunciou o vice, Vicente Solano Lima. O terceiro na sucessão, o senador Alejandro Díaz Bialet, foi afastado do país. Assumiu então o genro de López Rega, Raúl Lastiri. De imediato demitiu o ministro das Relações Exteriores, Juan Carlos Puig, e nomeou Alberto Vignes em seu lugar.

Vignes tinha um antecedente notório: Eva Perón afastou-o quando descobiru que se apropriava de bens de judeus perseguidos pelo nazismo. Como López Rega, Vignes era membro da organização fascista internacional Propaganda Dois (P-2), com sede em Roma e uma forte ramificação na Argentina. Vignes não só alimentou a Triple A, como foi um dos principais artífices da colaboração de serviços de inteligência do Cone Sul para que Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai e Brasil se convertessem em um inferno único. É o que, com o tempo, passou a se chamar Operação Condor e que consistiu na viagem dos assassinos e a transnacionalização do seqüestro, da tortura e do homicídio.

O chefe da Marinha, Emilio Massera, também era membro da P-2. Massera e Vignes firmaram uma colaboração poderosa dentro do governo. Os dois respondiam a Licio Gelli, um dos chefes da P-2. Vignes foi chanceler até agosto de 1975, quando López Rega deixou o governo por pressão dos sindicatos. De todo modo, já havia cumprido seu papel. A Triple A estava em funcionamento, o governo estava dominado pela P-2 e o golpe militar era um destino inexorável. Massera foi designado chefe da Marinha pelo governo peronista e exerceu uma forte incluência pessoal sobre Isabel Perón. Em 1976, integrou a primeira junta militar, com Jorge Videla e Orlando Agosti.

Nascido em 9 de outubro de 1945, Sadous era um jovem diplomata de 30 anos quando colaborou com Vignes e a equipe de Massera, segundo lembraram ao Página/12 três diplomatas que pediram para não ser identificados.

A Ordem de Malta

O embaixador na Argentina da Soberana Ordem de Malta é Antonio Caselli. Seu pai, Esteban Caselli, é embaixador da Ordem no Peru, foi embaixador de Carlos Menem no Vaticano e secretário de Culto na Chanceleria, tendo Carlos Ruckauf como ministro e Eduardo Duhalde como presidente de nação.

A Soberana Ordem de Malta tem entidade estatal internacional e algumas de suas legações gozam de imunidade. É uma das ordem que sobreviveu do processo das Cruzadas que, no século IX, buscou a expansão da Cristandade européia e,em 1099, conseguiu tomar Jerusalém, um ato que o Papado via como o antecedente terreno da conquista da Jerusalém celeste. Enquanto algumas ordens reinterpretaram seu passado, se tornaram autônomas do Vaticano e, na Segunda Guerra Mundial, abrigaram judeus perseguidos, a Ordem de Malta segue até hoje fiel a suas origens e a seus beneficiários: aqueles, por exemplo, que alimentavam hipocritamente o idealismo dos cristãos pobres enquanto estimulavam o aumento da arrecadação fiscal pontifícia e enriqueciam alugando navios com destino a Terra Santa.

Muito mais recentemente, mas com a mesma atenção pelas realidades do mundo terreno, Duhalde, Ruckauf e Caselli colocaram Sadous como embaixador na Venezuela, em 2002.

Foi no tempo deste mesmo trio que um embaixador de carreira, Vicente Espeche Gil, foi perseguido até a humilhação por Caselli. Espeche Gil, hoje embaixador na República Tcheca, não é precisamente um anticlerical: ex-embaixador no Vaticano e Israel, foi membro do Pontifício Conselho de Laicos. A perseguição de Caselli deveu-se a Gil ser um católico praticante que, como embaixador, não confundiu os planos e repreendeu-o por suas atitudes. Respondeu a um só Estado, o argentino, e não quis seguir Caselli em seus negócios com o ex-secretário de Estado do Vaticano, Ângelo Sodano.

Omissões e mistérios

Os documentos que registram a carreira burocrática de Sadous têm um ponto em comum: as contradições e as omissões. Um dos documentos sobre a passagem de Sadous no Ministério de Relações Exteriores tem uma lacuna suspeita. Na coluna de destinos (locais para os quais os diplomatas são designados), o período que vai de 31 de dezembro de 1974 a 28 de dezembro de 1975 figura com estas duas palavras: “Não informado”. Os encarregados do tema na Chanceleria poderiam averiguar com facilidade as razões do mistério. Primeiro, perguntando o motivo ao próprio Sadous, uma vez que ele é diplomata de carreira em atividade. E, segundo, revisando o conteúdo da resolução número 85 de 1975. Ou talvez não seja preciso. Um alto funcionário da Chanceleria disse ontem ao Página/12 que há outro documento no ministério mostrando que Sadous trabalhou na equipe particular do então chanceler Vignes em 1975.

Em outras palavras, há um documento falsificado e um documento completo sobre a mesma pessoa no mesmo período. Assim, um dá mais valor ao outro e vice-versa. O documento falsifica indica em outra parte que neste período Sadous não esteve no exterior. Na seção “Destinos”, pode-se ler no ano de 1975: “País”. “País” e “Exterior” são as duas grandes categorias em que se divide a seção “Destinos”.

É o único vazio. Todo o restante da carreira de Sadous está detalhado. Por exemplo, pela Resolução 545, de 1975, foi destinado a Itália. Atuou em Roma entre 29 de dezembro de 1975 e 9 de outubro de 1976. A Itália não era um destino qualquer neste momento. Licio Gelli, um dos chefes da seita fascista P-2, trabalhava direto entre Roma e Buenos Aires. Vignes conseguiu que, em 18 de outubro de 1973, a seis dias de assumir no lugar de Lastiri, Perón condecorasse Gelli com a Ordem do Libertador San Martín, no grau de Grã Cruz. Isabel e Vignes o nomearam conselheiro econômico da embaixada da Argentina na Itália, onde receberia colaboração de Sadous. Gelli tinha estreita relação com Vignes, a ponto de ter comprado deste uma estância na Argentina.

Mas, ainda mais importante que Vignes na rede do submundo italiano e do submundo argentino foi o então almirante Massera. O “Comandante Zero”, como foi conhecido no jargão da repressão clandestina, fincou pé na Chanceleria a ponto de colocar ali, depois do golpe, um homem de seu círculo íntimo. Entre 30 de março de 1976 e 23 de maio de 1977 o almirante César Guzetti foi o chanceler. Guzetti é a mesma pessoa que participou, no Chile, de uma reunião com Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA, na qual se reforçou a coordenação para a repressão no Cone Sul que havia iniciado com os assassinatos operados por Vignes.

Guzetti e seu sucessor, o almirante Oscar Montes, começaram por controlar seu próprio território, a Chancelaria. Marcelo Dupont, irmão do diplomata Gregório Dupont, foi assassinado logo depois de escutar as confidências da diplomata Elena Holmberg sobre as operações de inteligência do Centro Piloto Paris. Holmberg também foi assassinada. E também foi seqüestrado o embaixador da ditadura na Venezuela, o radical Héctor Hidalgo Sola, assim que descobriram que Caracas era outro núcleo da inteligência militar. Logo após a desaparição de Hidalgo Sola, Federico Marttfeld foi designado embaixador na Venezuela – outro integrante da P-2 ligado a Massera, Gelli e Vignes.

“Na Chancelaria, muitos diplomatas de carreira apoiaram a ditadura, assim como fez a maioria da burocracia do Estado; alguns diplomatas a toleraram sem fazer nada e uma minoria foi afastada ou perseguida”, disse um embaixador ao Página/12. “Mas os mais ativos durante a matança, os que colaboraram diretamente, também foram poucos”, acrescentou. “Algum dia será preciso publicar quem eram, na própria Chancelaria, os que marcavam seus colegas e faziam as listas negras”, disse ainda.

– Sadous foi um dos “marcadores”? – perguntou o Página/12.

– Já lhe disse; algum dia nós, diplomatas, teremos que reconstruir essa história – respondeu o embaixador.

Uma parte dos profissionais da Chancelaria tem clara a continuidade entre o lopezreguismo e a ditadura. A embaixadora May Lorenzo Alcalá, castigada e reparada com a volta da democracia em 1983, escreveu um texto interessante na página da Associação de Pessoal do Serviço Exterior da Nação (Apsen): “A limpeza ideológico-moral de Vignes facilitou muito a tarefa dos militares quando, em 1976, tomaram o poder. Só tiveram que afastar uns 30 por cento dos arruinados no período imediatamente anterior, formalmente constitucional”.

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Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

Fonte: Blog de Martín Granovsky, do Página/12, na Carta Maior