Faz um ano que faleceu Goffredo da Silva Telles, professor catedrático de introdução à ciência do direito da Faculdade de Direito da USP. Faz um ano que a morte privou gerações de alunos de seu convívio.

Com a morte, a estampa da vida se imprime na memória. Não a memória de fatos. Essa é estampa que se esmaece com o tempo. Mas a memória da força de uma convivência, um retrato que não se apaga.

“É da natureza do cérebro humano sentir dentro de estruturas, e perceber a parte dentro do todo e o todo dentro de um todo maior”, dizia ele. Essa preocupação primária com o todo sempre conformou o raciocínio vivo, didaticamente forte de Goffredo.

Talvez daí derivasse o encanto reconhecido de suas aulas, aquela sensação envolvente de um espetáculo sem falhas, onde tudo se fechava e se completava, e que arrebatava o aluno que o ouvia, inspirando certeza, segurança e paz.

Daí a razão de sua iniciação à ciência do direito (de conteúdo conhecido de gerações de alunos) ocupar-se inicialmente com uma teoria do ser para depois ali inserir o direito e este dentro da ética etc.

Daí sua ocupação com a lógica, expressão da ordem, numa obra que se chamou “Tratado da Consequência”. Daí o requinte da análise, marcante e pessoal, do seu magistral e provocativo livro “O Direito Quântico”.

O homem, no entanto, não está nos textos. Afinal, a escrita condensa e estiola. Só o pensamento vivo lhe dá vida. E nisso Goffredo foi mestre: não ensinava coisas nem pensamentos, ensinava a pensar. Era sua palavra, medida e calculada, sílaba por sílaba, que arrebatava a mente e desvanecia o coração.

Foi, por isso, em seu sentido próprio, um humanista, homem que sabe como preservar, admirar e cuidar das coisas do mundo, sem a elas se escravizar. Aí o sentido de sua independência, como princípio e não mera qualidade empírica.

Tratava-se, para ele, de uma capacidade de se elevar em liberdade acima das especialidades que aprendemos e exercemos. Daí o sentido maior de sua obra política, em que o Estado não é ordem avassaladora. Não reduz o indivíduo, ao integrá-lo. Não lhe confere liberdade, mas faz da liberdade um princípio supremo.

Foi a coragem desse humanista que o fez ler, em 1977, no pátio da Faculdade de Direito da USP, sua memorável “Carta aos Brasileiros”, em defesa da liberdade e do Estado de Direito, proclamada no contexto de um regime autoritário que, a partir daí, começou a fenecer.

Embora, para seus ouvintes, fosse a reivindicação do direito contra a opressão, tratava-se de muito mais que isso.

Pois, se direito tem a ver com liberdade e esta, com o mistério de ser humano, talvez se entenda por que Goffredo, ao término de seus cursos, nunca se cansou de repetir que o direito tem suas raízes enterradas no coração humano.

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Advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi aluno de Goffredo da Silva Telles Jr.

Fonte: jornal Folha de S. Paulo