O projeto fixa como objetivos da Comissão “promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de tortura, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria”, bem como “requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do Poder Público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo”. Estabelece, também, ser “dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a Comissão Nacional da Verdade”.

A criação da Comissão Nacional da Verdade representa um importante passo no aprofundamento da democracia. Esta conquista foi objeto de muita luta decorrente da resistência de setores militares ainda influentes. Só agora, no final do governo do Presidente Lula, que se consegue encaminhar o projeto ao legislativo.

Todavia novos passos terão que ser dados. Dentre eles que as atividades da Comissão resultem na abertura efetiva dos arquivos da ditadura, na identificação e devolução aos familiares dos restos mortais que tombaram na luta contra a ditadura, na identificação dos responsáveis por estes crimes e na punição aos torturadores.

Recentemente o STF decidiu por sete votos a dois, não acatar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF movido pela Ordem dos Advogados do Brasil onde esta entidade defendia que a lei de anistia não foi recepcionada pela Constituição de 1988 e por isto “a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra os opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985)”.

Nesta discussão oito questões se destacam: A Lei da anistia foi recepcionada pela Constituição de 1988?; Qual a legitimidade da Lei de Anistia?; Qual a natureza do crime de tortura?; Esta Lei poderia ser reinterpretada pelo STF?; A Lei de Anistia assegura uma “anistia bilateral”?; Direito à verdade; O reconhecimento da tortura como crime contra a humanidade, abrindo caminho para o julgamento dos torturadores, contribui ou atrapalha o avanço da democracia no Brasil?

Ao inaugurar uma nova ordem constitucional a legislação anterior, desde que não colida com a nova Constituição, continua tendo validade. Todavia a lei ou determinado dispositivo legal que entre em conflito com a nova ordem legal, perde sua eficácia jurídica, a não ser quando explicitamente recepcionada pelo novo texto constitucional.

O argumento do Ministro Eros Grau de que a Lei da Anistia teria sido recepcionada pela nova ordem jurídica, através da Emenda 26 que convocou a Constituinte, não se sustenta já que a nova ordem só é erigida a partir da nova Constituição. Neste sentido se manifestou a Ministra Carmen Lúcia afirmando “ a alegação de que a Emenda Constitucional n. 26/85 integraria a ordem constitucional instalada em 5 de novembro de 1988 não me convence, porque a Constituição de 1988 é Lei Fundamental no sentido de que é fundante e fundadora , logo o que veio antes e que não foi por ela cuidado expressamente para ser mantido não há de merecer o adjetivo de norma integrante do sistema constitucional”.

O aspecto da lei de anistia que entra em confronto com a Constituição de 1988 diz respeito à questão dos torturadores já que o novo texto constitucional é explícito ao afirmar que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura…”. O restante da lei não entra em contradição com a nova Constituição e, portanto, continua tendo validade.

Falando sobre a legitimidade da Lei de Anistia o Ministro relator Eros Grau citou o Procurador-Geral da República quando este ressalta que “se esse Supremo Tribunal Federal reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia e, no mesmo compasso, afirmar a possibilidade de acesso aos documentos históricos como forma de exercício do direito fundamental à verdade, o Brasil certamente estará em condições de, atento às lições do passado, prosseguir na construção madura do futuro democrático”. Todavia a Ministra Carmem Lúcia discorda deste ponto de vista ao afirmar: “O disposto no artigo 1º § 1º primeiro da Lei nº. 6683/79 não me parece justo, em especial porque desafia o respeito integral aos direitos humanos”.
A ilegitimidade deste parágrafo fica evidente quando se analisa as circunstancias em que ele foi aprovado. Sua aprovação se deu por um Congresso sob o controle dos militares em que os termos da lei, em particular deste parágrafo, foi uma imposição. Tanto assim que o ex-ministro do STF José Paulo declarou “No projeto, havia um ponto inegociável pelo governo “o § 1º do art. 1º, que definindo com amplitude heterodoxa o que se considerariam crimes conexos aos crimes políticos, tinha o sentido indisfarçável de fazer compreender, no alcance da anistia, os delitos de qualquer natureza cometidos nos “porões do regime”.

O direito evolui no tempo, conforme o avanço civilizacional. É por isto que a Constituição brasileira estabelece que a tortura seja crime inafiançável e insusceptível de graça ou anistia.
Por outro lado a quase totalidade dos países da América Latina, tomando por base o direito internacional, estão julgando os torturadores por considerar a tortura um crime contra a humanidade, imprescritível e não passível de anistia.

O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, aprovado em 17 de julho de 1994, define o crime contra a Humanidade “os atos seguintes: homicídio, extermínio, escravidão deportação ou transferência à força de uma população, tortura, violação, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização à força,crime de apartheid”, entre outros.

O Estatuto define a «tortura» como o “ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controlo do argüido”. E estabelece, também, que “os crimes de competência do Tribunal não prescrevem”.

Argumentando contra uma eventual decisão do STF de reinterpretar a Lei de Anistia o Ministro Eros Grau defendeu que uma eventual alteração do texto da Lei de anistia deveria ser feita pelo Congresso e afirmou “No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo”.

Apesar de apresentar inúmeros casos em que a revisão da anistia foi realizada pelos parlamentos o próprio Ministro Eros Grau afirma que em janeiro de 2007 a Corte Suprema Chilena, por maioria, considerou não suscetíveis de anistia e imprescritíveis os crimes cometidos contra o desaparecido político José Matias Ñanco, fazendo-o com esteio em normas de Direito Internacional, sob o argumento de que se tratava de crimes de lesa-humanidade. Afirma, também, que em junho de 2006, a Câmara de Cassação Penal Argentina declarou a inconstitucionalidade do indulto concedido pelo então Presidente Carlos Menem ao ex-general Santiago Riveros, decisão confirmada em junho de 2007 pela Corte Suprema, abrindo caminho para a declaração de inconstitucionalidade de indultos similares.

O problema do julgamento dos torturadores na verdade não é jurídico, mas político. No Brasil os militares que continuam apoiando o golpe de 64 são influentes e ativos enquanto o movimento democrático ainda não reuniu forças, como nos demais países da América Latina, para conseguir adotar medidas contra aqueles que cometeram crimes contra a humanidade. Todavia a luta deve continuar, pois só atingindo este objetivo estaremos colocando um ponto final neste passado e consolidando a nossa democracia.

Falando do conteúdo da Lei de Anistia o relator ressaltou que “ o legislador procurou estender a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção. Daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral”.

Na verdade não houve uma anistia bilateral e muito menos ampla. A Lei pretendeu anistiar os torturadores que praticaram o terrorismo de estado, porém excluiu do benefício aqueles que pegaram em armas sob a falsa alegação que se tratavam de “terroristas”. Estes não foram anistiados, todavia os que praticaram o terrorismo de estado foram.

Um ponto de vista unânime e positivo entre os ministros do STF foi o de considerar necessário que se realiza a busca da verdade em relação ao desrespeito dos direitos humanos na época da ditadura militar. Sobre o assunto ministro relator citou o Procurador Geral da República que se manifestou a favor do direito à verdade ao afirmar a importância do “acesso aos documentos históricos como forma de exercício do direito fundamental à verdade”.

Falando sobre o direito à verdade assim se expressou a Ministra Carmen Lúcia “ao contrário do que comumente se afirma de que anistia é esquecimento, o que aqui se tem é situação bem diversa: o Brasil ainda procura saber exatamente a extensão do que aconteceu nas décadas de sessenta, setenta e início da década de oitenta (período dos atentados contra o Conselho Federal da OAB e do Riocentro), quem fez, o que se fez, como se fez, por que se fez e para que se fez, exatamente para que, a partir do que venha a ser apurado, ressalva feita à questão penal nos crimes políticos e conexos, em relação aos quais prevalece a lei n. 6683/79, se adotem as providências administrativas e jurídicas adequadas”.

Certos setores defendem que não se deve “mexer no passado”, pois seria “reabrir velhas feridas” e prejudicar a conciliação nacional e a construção do futuro. Todavia a verdadeira conciliação nacional só virá quando os responsáveis pelos crimes contra a humanidade forem julgados.

Estes setores afirmam que é necessário julgar ambos os lados. Todavia os lutadores contra a ditadura já foram julgados, torturados e muitos assassinados. No entanto os torturadores, os que assassinaram, ocultaram cadáveres continuam sem responder pelos seus crimes e, muitas vezes, ocupando importantes cargos. Cabe destacar que é inaceitável querer dar um tratamento igual aos agredidos e aos agressores, aos torturados e torturadores, aos lutadores pela democracia e aos responsáveis pela implantação da ditadura.

O Ex-presidente da OAB Cezar Britto declarou que o Brasil é a única nação da América do Sul que não puniu torturadores. Esta situação tem que ser alterada para que não volte a ocorrer nunca mais.

Tal ponto de vista nada tem de revanchismo. Os que assim pensam têm como objetivo aprofundar o processo de democratização do País. A verdadeira reconciliação nacional somente virá quando certos setores militares fizerem a transição democrática que a grande maioria do povo brasileiro já fez.

A questão que está em jogo é questão democrática. Setores militares continuam defendendo o golpe de 64 como uma medida de “salvação nacional contra o comunismo”. Por isto defendem todas as medidas adotadas pelo regime ditatorial, inclusive procuram acobertar os torturadores. Para aprofundarmos o caminho democrático é fundamental que estes setores e, sobretudo, a maioria dos militares, em sintonia com a grande maioria do povo brasileiro, rompam com o passado a adotem uma postura democrática.

O PCdoB considera que as Forças Armadas têm um importante papel na construção de uma Nação forte, moderna e progressista objetivo este a ser conquistado através de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, com distribuição da renda, justiça social, valorização do trabalho, democracia, defesa do meio ambiente e afirmação da soberania nacional.
Todavia a construção desta Nação só será possível com uma ampla democracia. A questão nacional se imbrica com a questão democrática. E a conquista deste objetivo passa pela superação do passado sombrio da ditadura com o conhecimento da verdade e o julgamento dos responsáveis pelos crimes de lesa humanidade.

*Aldo Arantes, ex-preso político, representante do PCdoB no Grupo de Trabalho Tocantins responsável pele resgate dos restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia.