Minha família chegou em São Paulo fugindo da seca e da fome, no êxodo massivo em direção à “cidade grande”, entre os anos 50 e 60. Uma parte, vinda do sertão esquecido do Ceará, a outra, das margens do rio São Francisco, do Vale do Jequitinhonha. Uma desceu de pau-de-arara deixando dois dos filhos com a família e viajando com os dois menores. A outra chegou a morar debaixo de uma árvore, enquanto esperava melhores condições de viagem. Chegando a São Paulo, eles passaram anos em uma tal fazenda Boa-Vista, semi-feudal, onde 17 famílias trabalhavam em regime de escravidão por dívida.

Meu avô paterno disse uma vez que não sabia que tinha existido ditadura no país. E que a única coisa que ele lembrava com tristeza era que “os menino não tinha sapato pra ir pra escola, não”. Do lado materno, minha vó costurava com saco de farinha o “uniforme” da escola na mesma época.

Eu cheguei durante a redemocratização. Lembro do meu pai, que corria religiosamente a São Silvestre a cada ano, pintar com minha mãe uma regata pra maratona de 1992 : “cadeia nelle”, em referência ao pedido de impeachment de Fernando Collor de Melo, o presidente que tinha em sua casa torneiras de ouro e que confiscou a poupança de brasileiros de todo país causando uma hecatombe na economia e sociedade brasileiras.

Cresci com minha mãe, funcionária pública e meu pai, torneiro mecânico falando sobre manipulação midiática, brigando pelos estudos da gente, sonhando em terminar de construir a casa no fundão de Carapicuíba. Pra conseguir rebocar ou trocar as telhas, meu pai vendia as férias.

Tios morreram vítimas do vírus da AIDS, convencidos pela igreja evangélica de que, se acreditavam em deus e queriam ser curados, eles deviam abandonar os remédios. Éramos tratados como bandidos quando íamos visitar um tio na cadeia; a boa e velha criminalização da pobreza. Minha avó morreu aos 86 anos de um AVC e aos 82, doente e muito cansada, teve de ouvir de um médico do INSS que ela não tinha direito à aposentadoria porque ainda tinha condições plenas de trabalhar. E quantas tias sofreram caladas a violência doméstica perpetuada pelo machismo nosso de cada dia?

Por que lembrar disso tudo agora? Porque nunca foi fácil. Porque sempre fomos ignorados, jogados à própria sorte e sempre lutamos pela nossa sobrevivência. O que mudou então nesse hiato de 13 anos?

Um primo que morou em rua de terra por quase toda a vida e estudou na escola pública do PSDB se formou economista pelo Prouni; outro foi pra Inglaterra estudar inglês pelo Ciências sem Fronteiras. Tias se encantaram com o tratamento dado por médicos cubanos nos postos de saúde e conheceram, pela primeira vez, o que é um bom atendimento médico gratuito. Eu vi minha familia comprar um apartamento e, meu pai, devido a sua condição de saúde deteriorada pelo trabalho que teve, poder comprar um carro com isenção fiscal adaptado às suas necessidades, uma conquista de dignidade sem precedentes.

Esse Brasil que tentaram matar neste 11 de maio sabe de onde veio, sabe quem é, e nunca se acovardou. Esse Brasil sabe agora o que é conquistar um direito no lugar de um par de chinelos ou metade de uma nota de 50 reais. Esse Brasil chorou com cada conquista. Levantou a enxada no dia da formatura.

A história da minha família é a história de milhares de famílias brasileiras. Eu, hoje, batalho em nome dos meus avós retirantes e pelos meus tantos outros ancestrais cuja a história e memória me foram negadas.

Eu sou a filha de pobre que denuncia o golpe em francês, espanhol e inglês. E essa conquista não é só minha. Isso ninguém pode tirar da gente: a certeza de que em um momento esse país também foi nosso. De que um dia houve perspectiva. E de que votar, fez, pela primeira vez, algum sentido. Quem desmerece os avanços desses últimos anos nunca precisou deles ou tem dificuldade de se enxergar dentro de sua própria história.

De onde eu falo hoje? Da França. Jornalista, mestre pela Sorbonne Nouvelle e doutoranda na Paris 8/ UFABC. Professora na faculdade de comunicação da Paris 8 e bibliotecária, pra pagar as contas, na Biblioteca Nacional da França. Isso tudo agora, porque nesses cinco anos de Europa já fui garçonete, babá e faxineira.

Sempre houve luta. Luta é nosso sobrenome.