Um surto de violência atingiu níveis intoleráveis no Pará, são chacinas, assassinatos de jovens mestiçados nas periferias, agentes públicos mortos e a total banalização do direito humano à segurança e à própria vida, além da impunidade que grassa, encorajando ainda mais o barbarismo, a violência simbólica e a pós-verdade como método e cortina de fumaça para perpetuar o banho de sangue que aterroriza milhões de paraenses.

É diante desse contexto, sangrento, que assistimos atônitos, nos últimos anos, dezenas de mortes em pelo menos dois episódios de matanças orquestradas por grupos de milicianos: o do dia 4 de novembro de 2014, que vitimou 11 pessoas e, mais recentemente, entre 20 e 21 de janeiro de 2017, onde 28 pessoas foram mortas nas franjas periféricas da grande Belém, vitimando muita gente inocente, jovens estudantes e trabalhadores que nunca estiveram em conflito com a lei.

O estopim, em ambos os casos, fora a morte de dois policiais militares. O do líder de uma organização de segurança privada e miliciana, o Cabo Figueiredo, conhecido como “Pet”, no bairro do Guamá, um dos maiores de Belém e do Soldado Rafael da Silva Costa, alvejado em combate, enfrentando o crime organizado na Cabanagem, um dos bairros mais violentos da capital paraense.

A matança de 2014 motivou a criação, na Alepa, da CPI sobre Grupos de Extermínio e Milícias no Pará cujo Relatório Final foi capaz de desvendar que grupos criminosos de milicianos atuam abertamente em todo o Estado, promovendo assassinatos em larga escala, com a participação de policiais militares, financiados por empresas, comércio ilegal, tráfico de drogas, roubo de cargas e assalto a cofres públicos através de licitações fraudulentas.

Recomendações foram apresentadas e algumas vitórias pontuais foram asseguradas, como é o caso da criação do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Estado do Pará e do Conselho Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (CEPDDH).

Mas, diante da complexidade do tema, uma enorme dívida social e cultural ainda está por ser resolvida: a questão da impunidade. E quando inexiste a justiça, baseada no Estado Democrático de Direito, também ganha força a violência simbólica e a pós-verdade, teses cuja base teórica promove a mentira, a repetição da violência, o esquecimento e a adoção, pela sociedade, de padrões obscurantistas já enfrentados há dois mil anos pela ira de Cristo em chispas flamejantes contra o Código de Hamurabi.

Devemos saber, sinalizo, que gerada a impunidade um terrível substrato entra em cena: a negação da própria barbárie e a tentativa malsã de sua desconstrução no imaginário popular e na percepção das amplas camadas da consciência social. Quando isso acontece, a paz estará fraturada, moribunda, porque sem justiça, a paz, que é um substantivo feminino estará sob as degolas ideológicas dos violentos de plantão.

Trocando em miúdos: carro prata e carro preto, capuzes, matança indiscriminada nas periferias, sofrimento psíquico, crime militar e medo não passam da paranoia dos defensores de direitos humanos que, enfim, defendem vilões, meliantes desalmados e são arqui-inimigos dos intrépidos heróis das leis, fardados ou não. E quando isso acontece às lanças do fascismo estarão apontadas para o coração da democracia e para os direitos do povo, acendendo um rastilho de pólvora que pode produzir, inclusive, mais violência e crimes de caráter político contra militantes dos movimentos sociais.

Segundo o sociólogo francês, Pierre Bordieu, violência simbólica significa, grosso modo, a imposição dos padrões da cultura dominante aos dominados. Nessa perspectiva, o dominado, contrito, subjuga-se aos ditames de seu opressor considerando ser natural e até inevitável sua condição de espoliado moral, seja pela espetacularização da violência – o medo na forma de controle social – da empulhação midiática, monocórdica e irradiadora das premissas da lei do Talião, do olho por olho e dente por dente.

Não à toa que mais da metade da população brasileira – segundo pesquisa do Datafolha, de 2016, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ONG que reúne especialistas em violência urbana no país – acredita que “bandido bom é bandido morto”, termo cunhado pelo radialista paulistano Afanásio Jazadji que, em programas sensacionalistas na Rádio Globo, chegava à exigir que bandidos ‘pés-de-chinelo’ fossem torturados e mortos por agentes de segurança pública e populares insuflados pelo ódio. Eram tempos de ditadura militar no Brasil, do aparecimento de grupos de extermínio, como a Escuderia Le Coq do torturador Sérgio Paranhos Fleury e Paulo Maluf governava São Paulo.

Não obstante, em tempos de crise sistêmica do Capitalismo, em sua fase Neoliberal, um adjetivo tem sido utilizado como arma ideológica dos poderosos, a pós-verdade ou “post-truth”, ou seja, o momento em que a verdade está perdendo importância no debate político. A palavra – usada pela primeira vez em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich – foi eleita como o termo de 2016, segundo a Universidade de Oxford.

A adoção da pós-verdade, enquanto método teve força capaz de eleger o topetudo direitista Donald Trump à Casa Branca, assegurar a saída da Grã-Bretanha da União Européia – apelidada de “Brexit” – e o golpe político, jurídico e midiático que apeou Dilma Roussef do Palácio do Planalto, subvertendo a democracia brasileira na medida em que gangsteres, entreguistas, denodados corruptos e quadros do crime organizado assumiram os destinos da pátria tupiniquim. A estratégia da pós-verdade é apelar a preconceitos e radicalizar no uso indiscriminado de mentiras.

Posto tudo, meus botões sugerem que precisamos enfrentar de forma decidida, na ação e pensamento, a tentativa de transformar vítimas em criminosos, bandidos em heróis e reforçar a luta contra o mercado do crime e da segurança privada, cuja sustentação emana da ação política da “bancada da bala” e de obscuros interesses econômicos.

O ardil, portanto, para que o crime prospere está em criminalizar defensores de direitos humanos, subverter a verdade, promover linchamentos na mídia e decidir, como professores de Deus, quem deve viver ou morrer. Tais questões, enquanto estratégia, estão assentadas na violência simbólica e na pós-verdade, moral fascista, herança do Reich de Hitler.

A luta que enfrentam os paraenses e brasileiros, diante da falência das políticas de segurança pública, da violência indiscriminada contra os mais pobres e ação de falanges criminosas exige ampla união e mobilização social na construção da Paz e da Justiça, utopia dos séculos e de infindas gerações que nos legaram a história, a democracia e a liberdade.

*Paulo Fonteles Filho é Presidente do Instituto Paulo Fonteles de Direitos Humanos, blogueiro, poeta e membro da Comissão da Verdade do Pará.

Publicado no Blog do Paulo Fonteles Filho:  Verdade, Memória e Justiça na Amazônia