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Žižek: As “Teses de abril”, de Lenin

7 de abril de 2017

Trecho do livro Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917, uma antologia de textos históricos de Lenin selecionados, introduzidos e posfaciados por Slavoj Žižek, em que o filósofo esloveno comenta as lições que podemos tirar da ousadia do revolucionário russo naquele momento decisivo da história mundial. Publicado originalmente no Blog da Boitempo.

Quando, em suas “Teses de abril” (1917), Lenin identificou a Augenblick – a oportunidade única para uma revolução –, suas propostas foram ini­cialmente recebidas com estupor ou desdém pela grande maioria de seus cole­gas de partido. Nenhum líder proeminente dentro do Partido Bolchevique apoiou seu chamado à revolução, e o Pravda deu o extraordinário passo de dissociar o partido, assim como seu conselho editorial como um todo, das “Teses de abril”. Lenin estava longe de ser um oportunista que procurava lisonjear e explorar a atmosfera prevalecente entre o populacho; seus pon­tos de vista eram altamente idiossincráticos. Bogdanov caracterizou as “Teses de abril” como “o delírio de um louco”, e a própria Nadejda Krupskaia con­cluiu: “Temo que Lenin tenha enlouquecido”.

Esse é o Lenin de quem ainda temos o que aprender. A grandeza de Lenin residiu em, nessa situação catastrófica, não ter medo de triunfar – em contraste com o páthos negativo discernível em Rosa Luxemburgo e Adorno, para quem o ato autêntico em última instância era a admissão do fracasso que traz à luz a verdade da situação. Em 1917, em vez de esperar até que as condições fossem propícias, Lenin organizou um ataque preventivo; em 1920, como líder do partido da classe operária sem classe operária (a maior parte havia sido dizi­mada na guerra civil), ele deu prosseguimento à organização de um Estado, aceitando plenamente o paradoxo de um partido que tinha de organizar – e até recriar – sua própria base, sua classe operária.

Em nenhum lugar essa grandeza é mais evidente do que nos escritos de Lenin que cobrem o período de fevereiro de 1917 – quando a primeira revolução aboliu o tsarismo e instalou um regime democrático – até a segunda re­volução, em outubro. O texto de abertura deste volume (“Cartas de longe”) revela a compreensão inicial que Lenin teve daquela possibilidade revolucio­nária única, e o último texto (as minutas da “Reunião do Soviete de deputados operários e soldados de Petrogrado”) declara a tomada de poder pelos bolche­viques. Tudo está aqui, do Lenin “engenhoso estrategista militar” ao Lenin “da utopia decretada” (da imediata abolição do aparelho de Estado). Para nos referirmos novamente a Kierkegaard: o que podemos perceber nesses escritos é o Lenin em construção: não é ainda o Lenin “instituição soviética”, mas o Lenin jogado numa situação indefinida. Seremos ainda capazes, hoje em dia, de vivenciar o impacto devastador de um momento de “abertura” histórica de tal proporção, quando se “fecha” um ciclo no qual o capitalismo tardio decre­tou o “fim da história”?

Em fevereiro de 1917, Lenin era um emigrante político quase anônimo, perdido em Zurique, sem contatos confiáveis na Rússia, informando-se sobre os eventos basicamente pela imprensa suíça; em outubro de 1917 ele liderava a primeira revolução socialista bem-sucedida no mundo. O que aconteceu entre esses dois momentos? Em fevereiro, Lenin percebeu imediatamente a possibilidade revolucionária, o resultado de singulares circunstâncias contingentes – se o momento não fosse aproveitado, a possibilidade da revolução seria poster­gada, talvez por décadas. Em sua insistência obstinada de que se deveria correr o risco e prosseguir para o próximo estágio – ou seja, repetir a revolução –, ele estava só, ridicularizado pela maioria dos membros do comitê central de seu próprio partido; esta seleção de seus textos procura mostrar um pouco do obstinado, paciente – e muitas vezes frustrante –, trabalho revolucionário com o qual Lenin impôs sua visão. Mesmo que a intervenção pessoal de Lenin tenha sido indispensável, contudo, não devemos transformar a história da Re­volução de Outubro na história de um gênio solitário, confrontado com as massas desorientadas e gradualmente impondo suas ideias. Lenin triunfou porque seu apelo, ao mesmo tempo que passava por cima da nomenklatura do partido, encontrou eco naquilo que se poderia chamar de micropolítica revolucionária: a incrível explosão da democracia popular, de comitês locais sur­gindo em torno de todas as grandes cidades da Rússia e, ignorando a autoridade do governo “legítimo”, tomando a situação em suas próprias mãos. Essa é a história não contada da Revolução de Outubro, o oposto do mito de um pequeno grupo de revolucionários implacavelmente dedicados que deram um golpe de Estado.

A primeira coisa que chama a atenção do leitor atual é como os textos de Lenin de 1917 são facilmente legíveis: não há necessidade de longas notas explicativas – mesmo que os nomes nos sejam desconhecidos, imediatamente compreendemos o que está em jogo. Da distância histórica que temos hoje, os textos apresentam uma clareza quase clássica ao traçar os contornos da luta da qual participaram. Lenin está completamente ciente do paradoxo desta situa­ção: na primavera de 1917, depois da Revolução de Fevereiro, que derrubou o regime tsarista, a Rússia era o país mais democrático em toda a Europa, com um grau sem precedentes de mobilização de massas, liberdade de organização e liberdade de imprensa – ainda assim, essa liberdade tornou a situação não transparente, profundamente ambígua. Se há uma linha comum que perpassa todos os textos de Lenin escritos entre as duas revoluções (a de Fevereiro e a de Outubro), é sua insistência na distância que separa os contornos formais “explícitos” da luta política entre a multiplicidade de partidos e outros assuntos políticos das verdadeiras questões (paz imediata, distribuição da terra e, é claro, “todo o poder aos sovietes”, ou seja, o desmantelamento do aparelho de Estado existente e sua substituição por novas formas de administração social ao estilo das comunas). Essa distância é a distância entre a revolução qua explosão imaginária da liberdade em entusiasmo sublime, o momento mágico da solidariedade universal quando “tudo parece possível”, e o trabalho duro da reconstrução social que deve ser realizado se essa explosão entusiasmada dei­xar marcas na inércia do próprio edifício social.

Essa distância – uma repetição da distância entre 1789 e 1793 na Revolu­ção Francesa – é o próprio espaço da intervenção singular de Lenin: a lição fundamental do materialismo revolucionário é que a revolução deve atacar duas vezes, e por razões essenciais. A distância não é simplesmente a distância entre a forma e o conteúdo: o que a “primeira revolução” perde não é o con­teúdo, mas a própria forma – ela permanece presa à velha forma, acreditando que a liberdade e a justiça podem ser conseguidas se simplesmente colocar­mos o aparelho de Estado existente e os mecanismos democráticos para fun­cionar. E se o partido “bom” vencer as eleições livres e implementar “legal­mente” a transformação socialista? (A mais clara expressão dessa ilusão, beirando o ridículo, é a tese de Karl Kautsky, formulada na década de 1920, de que a forma política lógica no primeiro estágio do socialismo, da passagem do capitalismo para o socialismo, é a coalizão parlamentar de partidos burgueses e proletários.) Aqui há um paralelo perfeito com o início da era da modernida­de, quando a oposição à hegemonia ideológica da Igreja se articulou inicial­mente na forma de outra ideologia religiosa, como uma heresia: seguindo a mesma linha, os partidários da “primeira revolução” queriam subverter a dominação capitalista em sua própria forma de democracia capitalista. Essa é a “negação da negação” hegeliana: primeiro a antiga ordem é negada dentro de sua própria forma político-ideológica; depois é a própria forma que deve ser negada. Aqueles que titubeiam, aqueles que têm medo de dar o segundo passo para superar a forma em si, são aqueles que (parafraseando Robespierre) que­rem uma “revolução sem revolução” – e Lenin mostra toda a força de sua “hermenêutica da suspeita” ao explicar as diferentes formas desse recuo.

Leia mais em: Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917, antologia de textos históricos de Lenin selecionados, introduzidos e posfaciados por Slavoj Žižek.
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014), O absoluto frágil (2015) e o mais recente O sujeito incômodo (2016).