Nos anos 1990, como anotou Filgueiras (2017), alguns economistas passaram a empregar o termo “voo da galinha” para indicar o padrão de crescimento da economia capitalista no Brasil. Entretanto, entre 2004 e 2010 pareceu que esse padrão havia mudado de modo radical; pareceu que não podia ser mais visto como o voejo de uma galinha comum, mas como o adejo de uma galinha de angola. Pois, esta última é capaz de subir mais, ficar mais no alto e, assim, ir bem mais longe.

Na verdade, o padrão de crescimento mudara apenas temporariamente. Por assim dizer, a ave que cisca no quintal do capitalismo mundial aproveitara uma oportunidade, subira no poleiro para daí poder se lançar um pouco além…. Porém, após um animado voo que não durou tanto assim, despencou rumo ao chão; de fato, como bem se sabe, caiu na lagoa dos patos e afundou. Agora, ela luta para voltar ao velho terreiro e se tornar novamente capaz de voos provavelmente tão rasos e intermitentes como aqueles que foram observados entre 1990 e 2003.

É preciso ver que grande parte da classe dominante no Brasil por meio de suas forças políticas, já em 1990, abandonara qualquer projeto desenvolvimentista, ou seja, abdicara de qualquer projeto de crescimento econômico automovido e autossustentado. Pois, percebera que não tinha controle do processo de acumulação já que lhe faltava o domínio necessário da maioria das grandes empresas, dos processos tecnológicos e mesmo dos processos financeiros. Mais do que isso, faltava-lhe capacidade de “controle das vulnerabilidades externas estruturais” (Figueiras, 2017). Ela aceitou, então, a dependência, passando a perseguir um caminho medíocre de expansão econômica, um padrão de desenvolvimento que só pode ser classificado como “liberal periférico” (Filgueiras, 2016).

O quadro que já se observava na última década do século passado não deixou de ser agravar no presente século. Eis que os setores produtivos mais sofisticados se encontram dominados pelas empresas multinacionais; as ligações da matriz industrial se enfraqueceram progressivamente devido à desindustrialização; a pauta de exportação sofreu um processo de reprimarização; o setor financeiro se tornou cada vez mais oligopolista à medida mesmo em que se tornou cada vez mais dependente dos juros pagos pelo Estado.

A descrição metafórica posta nos dois primeiros parágrafos dessa nota – ainda que transpire uma mordacidade atroz –, deixa uma pergunta no ar. O gráfico da Figura 1 completa essa descrição fornecendo uma evidência estatística do desempenho da economia capitalista no Brasil entre 2000 e 2016. De modo usual entre os economistas, ele apresenta as taxas de crescimento do PIB como uma evidência principal do comportamento de seu sistema econômico, no período considerado. A pergunta que também ele encaminha vem a ser “como entender esse comportamento?”

A macroeconomia, em suas diversas variantes, tende a ver o comportamento do sistema econômico como um todo como uma questão de mau ou bom funcionamento. Além disso, tende a privilegiar a política econômica adotada como aquilo que explica o seu mau ou bom desempenho ao longo do tempo. Assim, por exemplo, os economistas neoliberais apontam para a política econômica do governo FHC para indicar que ela pôs os fundamentos do crescimento superior ocorrido durante o governo Lula. Por meio do tripé, taxa de câmbio flutuante, superávits primários e metas de inflação, ela supostamente construíra um ambiente de estabilidade macroeconômica que veio permitir à economia brasileira aproveitar bem o boom internacional que ocorrera no período. Já os economistas social-desenvolvimentistas assinalam que o efeito positivo desse boom fora internalizado e magnificado pelas políticas distributivas e favoráveis aos trabalhadores e aos pobres levadas a efeito pelo próprio governo Lula.2

Ora, essas duas posições, mesmo se contém um gole de verdade, compartilham, isto sim, de um bom copo de ilusão. Pois, a política econômica está sempre fortemente condicionada pelas condições históricas herdadas e pelas leis de tendência que operam no evolver do modo de produção enquanto tal. Se pode, sim, modificar a cadência própria desse desenvolvimento, não pode determiná-lo completamente. Dizendo de outro modo, ela não revoga as tendências do sistema. A nota que aqui se apresenta, por isso, vai se concentrar no exame do período de um ponto de vista estrutural, ou seja, focando o desenvolvimento das relações de produção e das forças produtivas. Para tanto, ele vai se valer fortemente de um estudo ainda não publicado, mas difundido na internet, de Marquetti, Hoff e Miebach (2016)3 .

Ademais, não se pretende pensar a questão já posta fazendo uso exclusivo da noção de causalidade, a qual apenas pode apreender a concatenação aparente dos fenômenos. De outro modo, busca-se aqui compreender as manifestações fenomênicas a partir de seus próprios fundamentos objetivos, examinando o desenvolvimento das contradições inerentes ao próprio modo de produção capitalista. Assume-se com vigor que as expansões e recessões, os booms e as crises do capitalismo, originam-se principalmente do evolver da relação de capital, isto é, da relação entre o capital e o trabalho assalariado, a qual tem ímpeto próprio, mesmo se o modo de evoluir depende também das instituições econômicas e das intervenções da política econômica. Esta última – é certo – manipula, podendo abrandar ou agravar, o funcionamento turbulento do sistema econômico.

O modo de produção capitalista é baseado na produção de mercadorias – e não simplesmente na produção de bens. E estas, como se sabe a partir da apresentação contida no primeiro capítulo de O capital, são objetos dúplices: valores de uso e valores. Os primeiros decorrem das propriedades materiais do próprio corpo ou dos efeitos das mercadorias; os segundos, provindos dos trabalhos executados na esfera da produção, manifestam-se na esfera da circulação por meio dos preços das mercadorias. Como os valores e os valores de uso formam antíteses objetivas, as mercadorias se apresentam, em consequência, como objetos contraditórios.

Além disso, como se sabe a partir da exposição contida no quarto capítulo de O capital, a meta objetiva desse modo de produção não é o fornecimento de valores de uso para atender as necessidades humanas, mas o crescimento ininterrupto do valor acumulado, isto é, a geração incessante de mais-valor. Ora, a contradição que fora antes apreendida de modo estático como constituinte da mercadoria, aqui se apresenta dinamicamente, pois o capitalismo não pode produzir sempre mais-valor sem produzir também sempre mais valores de uso. Se nada “pode ser valor, sem ser objeto de uso”, como diz Marx (1983-A, p. 49), também é verdade que nada será produzido de modo capitalista como valor de uso se também não puder propiciar a geração de mais-valor. Assim, mesmo bens extremamente úteis para as pessoas, podem se mostrar inúteis para os capitalistas enquanto tais; basta apenas que eles não gerem lucros suficientes quando forem vendidos como mercadorias.

A contradição entre valor de uso e valor contida na mercadoria se apresenta, pois, dinamicamente, como contradição entre o processo de produção e o processo de valorização. É, pois, o seu desenvolvimento que impulsiona, arrebata, espasma e derruba a atividade econômica no modo de produção capitalista.

O evolver da economia capitalista no Brasil entre 2000 e 2014 presta-se muito bem para expor de modo concreto como opera essa contradição num ciclo econômico caracterizado por um boom seguido de uma recessão. A analítica da taxa de lucro e do investimento tem servido à inúmeros estudos macroeconômicos inspirados na obra de Marx. Pois, como se sabe, para esse autor, “a taxa de valorização do capital global, a taxa de lucro, é o aguilhão da produção capitalista (assim como a valorização do capital é sua única finalidade) ” (Marx, 1983-B, p. 183).

Não se deve, porém, enxergar o problema num plano estritamente econômico. Pois, se a vida social se anima e se expande durante o boom, ela se deprime e se contrai durante a fase recessiva do ciclo. Ora, no mesmo período em que o sistema econômico passa a atender de modo melhor as necessidades das pessoas (entre 2004 a 2010), criam-se já as condições em que ele deixará de fazê-lo (entre 2011 e 2016, pelo menos). E entre essas pessoas deve-se atentar especialmente para os trabalhadores e suas famílias, pois são eles que sofrem as piores consequências da redução da produção de 4 riqueza material, mesmo se respondem em exclusivo pela criação da riqueza abstrata no modo de produção capitalista. 

Se o investimento cresce na fase de boom com a elevação da taxa de lucro, também é verdade que o seu próprio crescimento engendra as condições que, na fase seguinte, propiciarão uma queda dessa taxa e, assim, o seu próprio decrescimento. Na figura 2, tirada do estudo de Marquetti, Hoff e Miebach, o formato dos gráficos da taxa de lucro4 e da taxa de acumulação mostram esse fenômeno de um modo exemplar. A taxa de lucro começa a crescer a partir de 2002, atinge o seu pico em 2007, passando a cair daí em diante. A taxa de acumulação inicia a sua elevação a partir de 2003, chega ao máximo em 2011, para cair fortemente nos anos seguintes, acompanhando com uma certa defasagem a queda da taxa de lucro.

Note-se que se a taxa de acumulação não caiu já a partir de 2008 é porque a demanda efetiva foi sustentada pelo artifício de uma política econômica que era insustentável a médio prazo. Como ressaltaram os autores do estudo mencionado, “a estratégia de crescimento por meio de subsídios e estímulos ao setor privado em um período de queda da taxa de lucro foi um erro” (Marquetti, Hoff e Miebach, 2016). Note-se também que a recessão anunciada já em 2011 foi transformada numa depressão a partir de 2015 devido à política de austeridade, à crise política ligada ao impedimento da presidente eleita em 2014, assim como em razão do impacto econômico do processo judicial da Lava-Jato.

O estudo desses três autores fornece não apenas a série estatística da evolução da taxa de lucro líquida, mas também três outras séries que permitem compreender melhor o seu comportamento durante o período considerado. Essas séries, construídas a partir de dados brutos obtidos das contas nacionais produzidas pelo IBGE e plotadas na Figura 3, fornecem as informações básicas necessárias para continuar respondendo à pergunta antes formulada.

Como se sabe, a taxa de lucro pode ser decomposta multiplicativamente na parcela de lucro no valor adicional global, no grau de utilização da capacidade instalada e na eficácia do capital, isto é, na relação entre o “produto” e o capital em uso. Sabe-se também que essa decomposição faz sentido porque há nexos reais entre essas variáveis. Assumindo que r é a taxa de lucro líquida, L é a massa de lucro, K é uma medida do estoque de capital fixo, Y é o valor adicionado (produto) e u é uma medida da utilização da capacidade instalada5 , tem-se: 

Note-se, agora, que aquele que empregam essa formulação do problema costumam assumir implicitamente que a taxa de lucro é o determinante principal do investimento e, assim, da dinâmica expansiva e flutuante da acumulação de capital. E, tendo essa fórmula por referência, eles tomam em geral os três componentes da direita como determinantes da taxa de lucro, sem se advertirem que os seus andamentos também decorrem do próprio investimento. Pois, o processo de acumulação de capital não ocorre em geral sem modificar a repartição do valor adicionado pelo trabalho entre os salários e os lucros, sem alterar o grau de uso do capital fixo e sem mudar a eficácia do capital em uso. Há, pois, processos de realimentação entre essas variáveis e eles precisam ser considerados. Se a elevação da utilização da capacidade e da eficácia do capital favorecem a acumulação, a queda da parcela de lucros desfavorece.

Devido à falta de dinamismo tecnológico da economia capitalista no Brasil não era de se esperar que a eficácia do capital em uso viesse a se alterar significativamente durante o período considerado. Sabe-se que o processo de desindustrialização se acentuou nesses dezesseis anos e que isto deve ter dado maior peso aos setores mais intensivos em trabalho. Entretanto, o progresso técnico em geral pode ter compensado esse rebalanceamento setorial. De qualquer modo, o que se vê é que as medidas da eficácia do capital são as mesmas no início e no fim da série computada.

Nota-se também que há uma boa correlação (0,5) entre as séries da utilização da capacidade e da relação produto-capital em uso. Ambas as séries sobem a partir de 2002/2003 e caem a partir de 2010. Isto parece indicar que o crescimento e o decrescimento observado em ambas as séries se devem, respectivamente, à própria subida seguida da descida da intensidade da acumulação de capital no período como um todo. O arranque a partir de 2003, como se sabe, proveio de um motor externo, isto é, do boom da economia internacional que se refletiu na economia do Brasil por meio do crescimento dos preços das matérias primas exportadas. 

A variável crucial para entender o movimento da taxa de lucro entre 2000 e 2015 vem a ser a parcela de lucro no valor adicionado. Ela sobe até 2004, passando a cair tendencialmente daí então durante dez anos consecutivos. Tendo chegado a quase 42 por cento do valor adicionado em 2004, ela chegou a pouco menos de 33 por cento em 2014. Como o estímulo à acumulação vem principalmente da lucratividade, para Marquetti, Hoff e Miebach, a causa da crise e da ruptura do pacto político que sustentara por 12 anos os governos do Partido dos Trabalhadores foi uma forte compressão das margens de lucros. Invertendo essa tendência, o gráfico sugere que essa parcela passou a se recuperar a partir de 2015. E essa reversão é bem possível pois a crise econômica tende a abater o salário real, sem deixar de incentivar elevações na produtividade do trabalho.

Se a queda da parcela de lucro entre 2004 e 2007 é pequena, ela se tornou bem acentuada daí então. E esse comportamento é explicado porque o salário médio real tendeu a ultrapassar o crescimento da produtividade do trabalho especialmente a partir de 2007. Se o primeiro resultado se explica pelo próprio ímpeto da acumulação, o segundo requer uma menção à política econômica. Esta, como já se mencionou, foi manejada para sustentar o crescimento – elevação do salário mínimo acima da inflação, bolsa-família, expansão do crédito, desoneração tributária – quando a tendência inerente do sistema era caminhar no sentido contrário. Assim, ela produziu por um certo tempo uma certa euforia entre a grande, média e pequena burguesia, e mesmo entre os trabalhadores empregados e desempregados; porém, ao mesmo tempo, potencializou uma crise econômica mais forte que logo sobreviria.

Não é certo, porém, que os neoliberais, os quais agora clamam contra o que eles chamam de “nova matriz macroeconômica”, ou seja, a política econômica articulada 7 pelo Partido do Trabalhadores e implementada a partir de 2008, fariam melhor. Eles só sabem “Economics” e, por isso, entendem muito pouco de capitalismo. Na verdade, eles se destacam por serem defensores da austeridade e, em consequência, da acumulação rentista. Agora novamente no poder, é possível ver que eles já estão fazendo pior – pelo menos do ponto de vista das trabalhadoras e dos trabalhadores, da grande maioria.

 

Referências

Bonelli, Regis – Uma medida da utilização da capacidade na economia brasileira, 1947- 2016: nota metodológica. IBRE/FGV. Disponível na internet em http://serieshistoricas.ibre.fgv.br/posts/uma-medida-da-utilizacao-de-capacidade-naeconomia-brasileira-1947-2016.

Filgueiras, Luiz – Padrão de desenvolvimento e a natureza estrutural do “voo da galinha”. Publicado neste blog em 14/03/2017. ______________ – O neoliberalismo no Brasil: estrutura, dinâmica e ajuste do modelo econômico. Clacso, 2016. Disponível na internet em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/basua/C05Filgueiras.pdf.

Marquetti, Adalmir; Hoff, Cecília; Miebach, Alessandro – Lucratividade e distribuição: a origem econômica da crise política brasileira. Disponível na internet em https://www.researchegate.net/312191358.

Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Volume I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983-A. ______________ – Crítica da Economia Política. Volume III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983-B.

 

1 Professor titular e sênior da FEA/USP. Correio eletrônico: [email protected]. Blog na internet: http://eleuterioprado.wordpress.com

2 Os dois mandatos do governo FHC ocorreram entre 1995 e 2002; já os dois mantados do governo Lula aconteceram entre 2003 e 2010 (com os extremos incluídos em ambos os casos).

3 Recomenda-se aqui que esse estudo seja lido e estudado no original porque se trata de um dos melhores que foram produzidos sobre a crise recente da economia capitalista no Brasil. GE

4 A massa de lucro usada para calcular essa taxa de lucro é líquida de depreciação, mas contém ainda os impostos pagos ao governo e os juros pagos ao setor financeiro. Se fosse possível calcular a taxa de lucro empresarial, ela teria de ser considerada na comparação com a taxa de acumulação. Nesse caso, os valores da taxa de lucro plotados no gráfico seriam substancialmente menores.

5 Empregou-se ao invés da estimativa original do estudo de Marquetti, Hoff e Miebach (2016), uma estimativa de utilização de capacidade instalada encontrada no estudo de Bonelli (2016), pois essa última pareceu mais consistente. m substancialmente menores.