No parlamento brasileiro (mas a mesma discussão também está se avivando na Europa) foi apresentado, por estes dias, um projeto de lei que tem por finalidade punir penalmente a apologia do comunismo, com o seguinte argumento: “o comunismo teria cometido cem milhões de mortes.”. Deixemos de lado as considerações sobre o caráter grosseiro dessa operação, porque os símbolos que se queria proibir (a foice e o martelo e as referências à tradição teórica do socialismo) representam um panorama incrivelmente variado, não redutível a uma única experiência, dentro do qual se encontra, com todas as suas articulações, a história da luta pela emancipação do mundo do trabalho. Dentre os argumentos utilizados se diz: “é necessário impedir a instigação ao ódio e à luta de classe!”. Faria rir, se não fosse trágica, uma afirmação semelhante, porque o ódio de classe não apenas é instigado no plano teórico, como também é concretamente praticado nas nossas sociedades ocidentais, só que de cima para baixo. Como definir de modo diferente pelo menos quatro décadas de ataque aos direitos sociais, e mesmo os do mundo do trabalho que visam a favorecer a acumulação dos capitais e a especulação financeira? Como chamar o vertiginoso aumento, nos últimos quarenta anos, do fosso entre os que têm muito (de modo cada vez mais descarado e em formas indecorosamente concentradas) e os que não têm nada? Como classificar a sistemática espoliação das riquezas dos assim chamados países “subdesenvolvidos”, por parte dos países ricos, à qual se soma o achincalhe da limitação da livre circulação dos seus cidadãos? Nós temos tido por séculos (e ainda temos) o direito de invadi-los, explorá-los e roubá-los, mas aos povos do Sul do mundo não é permitido sair do deserto que criamos em torno deles. O que seria tudo isso senão ódio e luta de classe?

Fala-se frequentemente, em termos puramente retóricos, de liberdades fundamentais, mas a primeira delas consiste no direito de não morrer de fome, ignorância e por falta de assistência médica. Portanto, se encaramos a realidade com uma perspectiva menos amenizada, podemos tranquilamente afirmar que estes são negados à esmagadora maioria da população mundial.

Agora se tornou lugar-comum citar a questionável avaliação das lutas (por atacado) feita no famigerado Livro negro do comunismo, no qual estão também incluídas as mortes por guerras e por carências de recursos, em grande parte dos casos provocadas de fora. Seria o momento – acredito eu – de escrever também um Livro negro do liberalismo. Domenico Losurdo fez, por décadas, esse trabalho por meio de uma pontual crítica histórica e filosófica, mas falta um livro simples em números, de elementar contabilidade política do capitalismo. Se, de fato usássemos os mesmos parâmetros adotados por Stéphane Courtois & Co., quantos milhões de mortos devíamos atribuir à expansão mundial das nossas relações sociais burguesas? Vamos apenas tentar pensar: as consequências históricas da acumulação original de capital sobre as incalculáveis massas rurais expulsas dos campos transformadas em multidões de mendigos nas grandes periferias urbanas; o extermínio dos povos nativos no Norte e Sul da América, Ásia e Oceania; os mortos por causa da miséria e da exploração colonial ocidental na África, incluindo o escravismo; as infinitas guerras imperialistas conduzidas nos últimos dois séculos em todos os cantos do planeta para roubar os recursos dos “povos não civilizados”. Uma hecatombe, muito bem escondida nos livros ou tratados de divulgação sobre a história da humanidade. Isso também confirma um ponto já desenvolvido por Marx e Engels na metade do século 19: justamente no terreno das ideologias é que está o verdadeiro êxito da sociedade burguesa, e assim, o fato de ter transformado o mundo em um grande cemitério é apresentado como afirmação dos princípios de liberdade e civilização sobre a barbárie. O paradoxo histórico é que, mesmo sendo mestres da ideologia, os grandes e pequenos teóricos do liberalismo fazem da crítica às ideologias a sua própria batalha mais característica. A confirmação da sua capacidade hegemônica é que a maioria das pessoas, também dotada de uma boa cultura, nela acredita e a reproduz mais ou menos conscientemente.

“Na economia política, a assim chamada acumulação original do capital tem a mesma função que o pecado original na teologia: Adão deu uma dentada na maçã e com isso o pecado se abateu sobre o gênero humano. Com isso se explica a origem, contada como uma história do passado. Era uma vez, em uma época muito distante, de um lado, uma elite dirigente, inteligente e sobretudo econômica e, de outro, os miseráveis preguiçosos que desperdiçam tudo o que lhes pertence, e ainda mais. Mas a lenda do pecado original teológica nos diz como o homem foi condenado a ganhar a vida com o suor do rosto; a história do pecado original econômico, ao contrário, nos revela como escaparam disso as pessoas que não precisam fazer esforço. Não fazem nada! E assim aconteceu que os primeiros acumularam riqueza e os outros, no final, não tiveram outra coisa a vender senão a própria pele. É a partir desse pecado original que se estabelece a pobreza da grande massa que, cada vez mais, apesar de todo o seu trabalho, não tem outra coisa a vender senão a si mesma; e a riqueza dos poucos que cresce continuamente mesmo que há um longo tempo eles tenham deixado de trabalhar (1)”.

* Gianni Fresu é doutor em Filosofia pela Universidade de Urbino, professor de Filosofia Política na Universidade Federal de Uberlândia (Minas Gerais, Brasil).

 

Nota

(1) MARX, K. Il capitale. Critica dell’economia politica (O Capital. Crítica da economia política). Roma: Editori riuniti, 1997, p. 777.

Original em italiano: http://www.giannifresu.it/2017/07/le-ipocrisie-dellideologia-liberale-cosiddetto-odio-classe/