“Duas epidemias assolaram o mundo em 1918. Uma foi a influenza espanhola […] A outra epidemia foi o bolchevismo, que por determinado período pareceu quase tão contagioso quanto e no final das contas se provou tão letal quanto a influenza.”
(Niall Ferguson, The War of the World, pp. 115-5).

Assim nos fala o mais bem sucedido historiador ocidental de nosso tempo, para quem a Revolução de Outubro evidentemente não passa de um capítulo na história de loucura (e de loucura criminosa, diga-se). E no entanto essa mesma revolução pôs fim ao monstruoso “genocídio” [Völkermord] tão memoravelmente denunciado por Rosa Luxemburgo, essa mesma revolução forçou o fim do que Bukharin chamou de uma “sombria fábrica de cadáveres”.

A Primeira Guerra Mundial foi uma carnificina total em que até mesmo pessoas completamente alheias ao conflito foram obrigadas a participar. Conforme observou o respeitado historiador britânico A. J. P. Taylor, “cerca de 50 milhões de africanos e 150 milhões de indianos foram envolvidos, sem consulta, em uma guerra a respeito da qual não compreendiam nada”. Foram simplesmente recolhidos pelo governo londrino e deportados a milhares de quilômetros de distância, para serem conduzidos a uma “sombria fábrica de cadáveres” que agora operava a pleno vapor na Europa. Foram levados lá como membros de uma “raça inferior”, que uma “raça superior” podia em boa consciência sacrificar como bucha de canhão (ver Guerra e revolução: o mundo um século após Outubro de 1917, pp.176-7, 309 e 168).

E, no entanto para Ferguson, e para a ideologia hegemônica hoje, não há dúvida: a dominação colonial e o banho de sangue da guerra mundial são sinônimos de normalidade, ou mesmo de sanidade psicológica, enquanto que a Revolução de Outubro – oposta a tudo isso – representa uma epidemia, a disseminação da loucura.

Quando afinal teria atacado primeiro essa doença revolucionária? De acordo com outro dos mais aclamados historiadores da corte por parte do ocidente liberal e capitalista, Richard Pipes, o Outubro Bolchevique não passou da conclusão do ruinoso ciclo histórico que iniciou na Rússia com a Revolução de 1905. Outros expoentes do revisionismo histórico vão ainda mais longe, afirmando que, no ocidente, o vírus revolucionário e essa epidemia toda começou a encolerizar-se já em meados do século XIX, com a publicação do Manifesto Comunista, ou ainda antes, com a disseminação da filosofia das luzes que deu origem revolução jacobina (prólogo à Revolução Bolchevique).

A essa altura, tudo fica evidente: tanto para os revisionistas históricos quanto para a ideologia dominante, equaciona-se saúde espiritual e mental com estabilidade do ancien régime. No conjunto, esse último foi caracterizado por uma hierarquia social e racial, caracterizado nas colônias pela expropriação, deportação e dizimação dos nativos. Esse é o mundo que a Revolução de Outubro teve o grande mérito de mergulhar em crise. Se o apelo de Lênin aos “escravos coloniais” para que rompessem seus grilhões inspirou e estimulou a revolução anticolonial mundial, outros slogans ainda estão para serem realizados. Talvez eles devessem ser repensados hoje, tendo em vista realizar sua plena efetividade.

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Domenico Losurdo nasceu em 1941, na Itália. Professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino, doutorou-se com uma tese sobre Karl Rosenkranz. Pela Boitempo, lançou A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense (2010), A luta de classes: uma história política e filosófica, e o mais recente Guerra e revolução: o mundo um século após Outubro de 1917 (2017).

Publicado originalmente no Blog da Boitempo Blog no WordPress.com.