Desembarco no aeroporto de Belém à meia-noite do dia 26 de outubro de 2017. Normalmente ele estaria lá, à minha espera: sorriso generoso, braços abertos para o abraço de todos os reencontros. De lá iríamos ao ver-o-peso e outros paradeiros da inquieta noite de Belém. Entre uma cerveja e outra, mais uma interminável noite de bate-papo sobre temas importantes e outros nem tanto.

Mas naquela noite nada disso se repetiu. Eu chegava para enterrar meu amigo Paulo Fonteles Filho, que sofrera uma parada cardíaca após complicações de uma broncopneumonia.

Estive com Paulinho pela primeira vez quando de visita ao Rio de Janeiro no começo de 1995. Mas a verdade é que já o conhecia desde bem antes. Um amigo em comum, Edvar Bonotto, não se cansava de repetir que eu tinha de conhecer um jovem militante comunista do Pará, filho do célebre deputado Paulo Fonteles, assassinado a mando do latifúndio em 1987.

“Não tenho dúvida”, dizia Edvar. “Vocês serão os melhores amigos!”

Como de costume, ele tinha razão. Ao longo dos anos brotou entre mim e Paulo uma sólida amizade. Não aquela dos melodramas fáceis, mas uma amizade real, com suas contradições e agruras.

Paulinho foi um dos grandes políticos de nossa geração. Presidente estadual e membro da Direção Nacional da União da Juventude Socialista, dirigente do PCdoB paraense, vereador da cidade de Belém por dois mandatos. Não era um político qualquer. Sua atuação jamais se restringiu ao pragmatismo cego que costuma caracterizar nove em cada dez políticos.

Era um quadro completo, de um tipo que se torna cada vez mais escasso. Era bom na “grande” e na “pequena” política, para usar os termos de Gramsci. Aliava razão e paixão, concretude e sonho, objetividade e utopia. Talvez por isso conseguisse atuar em todas as posições do jogo político e ideológico.

Recordo-me de seu entusiasmo com um dos projetos de lei que apresentou à Câmara de Belém: o que propunha a institucionalização do “Dia do Saci” na mesma data em que crescentemente se comemora, em nosso país, o halloween norte-americano. Patriota convicto, argumentava com vigor acerca da necessidade e da justeza daquela iniciativa.

Após o término de sua atividade parlamentar, tornou-se um incansável ativista em defesa dos direitos humanos. Presidia o Instituto Paulo Fonteles (IPF) e era membro da Comissão Estadual da Verdade, onde desenvolveu notável trabalho na preservação da memória das lutas populares, em especial das populações camponesas da região do Araguaia. Uma memória da qual ele – tal qual seu pai – agora também faz parte. São de extraordinária riqueza as fontes documentais coligidas por ele, as quais se encontram hoje no acervo do IPF.

A par da atividade propriamente política, desenvolveu um importante trabalho intelectual. Era um escritor de verve, dotado de raro talento poético. Não por acaso, a literatura era presença certa em nossos encontros. Discutíamos tudo – da vida e obra dos autores preferidos ao emprego de certos termos. Certa vez empolgou-se com a palavra “escarlate”, que eu, em artigo sobre a morte de Hugo Chávez, havia usado para descrever a multidão vermelha que tomara Caracas após a partida do presidente venezuelano.

Em outra situação escutávamos, em meu apartamento em São Paulo, um velho CD no qual Ariano Suassuna recitava, ao som do Quinteto Armorial, parte de sua obra poética. Lembro-me de ver Paulinho exultante com a descrição de Suassuna para a primeira experiência sexual. “Havia feito contato com a corrente subterrânea do mundo”, narrava o poeta pernambucano.

Paulo construiu uma produção literária vasta e instigante, como pode ser conferido em Araguaianas – as histórias que não podem ser esquecidas, que a editora Anita Garibaldi lançou em 2013. O livro, fruto de intenso trabalho de pesquisa, reúne crônicas sobre a repressão política promovida pela ditadura de 1964 no sul do Pará.

A luta contra a repressão foi, aliás, uma constante em sua vida. Nasceu nos cárceres da ditadura, arrancado a fórceps da barriga da mãe, D.ª Hecilda, que não tivera sequer direito a anestesia. Os agentes da pressão rosnavam. “O ministro do Garrastazu, que como lobo rodeava-me / com sangue nas mãos e as presas afiadas / […] dizia: ‘Filho desta raça não deve nascer’”, narra Paulinho em um de seus poemas.

Mais tarde, com apenas quinze anos, viveria o trauma da perda prematura do pai, advogado de camponeses pobres assassinado por jagunços do latifúndio. Quem conhecesse sua história entenderia rapidamente por que travava luta tão urgente e obstinada contra todas as formas de opressão.

Opressão que, a meu ver, figura entre os motivos de sua perda. Em princípio, tendemos a olhar apenas para as causas próximas, isto é, as complicações decorrentes de problemas de saúde. Mas creio haver uma relação oculta – ainda por ser mais bem compreendida – entre o falecimento de Paulo e os dissabores que sofreu como vítima direta e indireta da repressão.

Quem me alertou para isso foi a viúva, Angelina, que confidenciou: “Ele não queria ficar no hospital. Debateu-se para sair de lá, e isso agravou o quadro clínico. O que matou Paulinho não foi tanto a pneumonia, mas a ansiedade”. Ansiedade que vinha de longe, desde os primeiros momentos, quando conheceu, ainda como bebê recém-nascido, a ferocidade da ditadura.

Por uma dessas estranhas coincidências que sempre acontecem, quis o destino que Paulinho se fosse a apenas cinco dias da data em que, dez anos atrás, partia o também saudoso Edvar Bonotto. Foram duas personalidades marcantes de nossa geração – a geração do impeachment de Collor, do Fora FHC! e da eleição de Lula para a Presidência da República; a mesma geração que foi chamada à construção do partido nas condições da legalidade, enfrentando as ameaças à democracia, aos direitos sociais e à soberania nacional trazidas pela implementação do neoliberalismo.

Em seu velório, na Assembleia Legislativa do Pará, discursei diante de seu corpo, exaltando sua trajetória e o significado de sua vida. Encerrei minha fala recitando três estrofes da “Canção do Tamoio”, do poeta maranhense Gonçalves Dias, lembrando que, em nossas noitadas de cerveja, costumávamos nos divertir recitando esse poema: 

“Um dia vivemos!

O homem que é forte

Não teme da morte;

Só teme fugir;

No arco que entesa

Tem certa uma presa,

Quer seja tapuia,

Condor ou tapir.

[…] 

“Porém se a fortuna,

Traindo teus passos,

Te arroja nos laços

Do imigo falaz!

Na última hora

Teus feitos memora,

Tranquilo nos gestos,

Impávido, audaz.

 

“E cai como o tronco

Do raio tocado,

Partido, rojado

Por larga extensão;

Assim morre o forte!

No passo da morte

Triunfa, conquista

Mais alto brasão.”

 

Certamente, Paulo Fonteles Filho acaba de conquistar “mais alto brasão”. Sua presença física se vai, mas seu espírito agora espraia-se, como o sereno, pelas matas úmidas do Araguaia. Neste exato instante, tenho certeza, está ele a correr a mata ao lado do rei Oxóssi e da cabocla Jurema, do negro Osvaldão e de todos os encantados do terecô, a liderar um exército de sacis e caiporas. Ele agora é um dos guardiões etéreos do Araguaia.

Passem-se dez, cem, mil anos; encerre-se a grande noite da luta de classes. Nós, lutadores do povo, estaremos lá, Paulinho redivivo conosco, sua memória a alimentar a luta sempre inconclusa por uma vida digna e feliz.

Até logo, Paulo Fonteles! Até breve! Até sempre!

 

Paulo Fonteles com camaradas do Maranhão após debate sobre os 25 anos da Guerrilha do Araguaia organizado pela Fundação Maurício Grabois no âmbito da 64ª Reunião Anual da SBPC (São Luís, 2012);

 

* Versão ampliada do discurso proferido na Assembleia Legislativa do Pará, durante o velório de Paulo Fonteles Filho. Belém, 27 de outubro de 2017.

** Jornalista. Professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da UFMA.