Nada melhor que um fato com farta divulgação, como ocorreu neste julgamento que condenou o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva em segunda instância no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) nesta quarta-feira (24), para se compreender trapaças ideológicas e mostrar as coisas como elas realmente são. Os pronunciamentos dos três desembargadores — João Pedro Gebran Neto (relator da Operação Lava Jato), Leandro Paulsen (revisor do processo) e Victor Luiz dos Santos Laus — responsáveis por consumar a chicana evidenciaram o grande conluio há muito constatado pela percepção dos que acompanham o caso com um mínimo de atenção.

A trama se enquadra na clássica categoria rodriguiana do óbvio ululante, por ser um movimento anunciado assim que os golpistas levantaram as primeiras ondas de calúnias tão logo Lula pisou no Palácio do Planalto como presidente eleito em 2002. A prova incontestável disso é que a mídia e seus produtos supostamente informativos — editoriais, programas de entrevistas, análises de articulistas, notícias e pesquisas de opinião — tentaram emparedar os governos do ciclo progressista desde o seu início, se utilizando dos megacartéis de “opinião pública” que deitam falação em nome da “sociedade” sem ter recebido nenhuma procuração do povo para representá-lo.

Nessa busca desenfreada e desqualificada de notícias, palpites, fofocas, pseudofatos, pontos de vista e pontos sem vista essa indústria chicaneira deixa “brechas”, como observou uma matéria do jornal Valor Econômico, que ouviu alguns juristas que analisaram o mérito da sentença sancionada pelos desembargadores do TRF-4. Segundo eles, não está comprovado se Lula, enquanto era presidente da República (2003-2010), solicitou, aceitou ou recebeu vantagem da empreiteira OAS, envolvida na polêmica do triplex do Guarujá. Os juristas também veem dificuldades para se evidenciar se a transação do litoral paulista estava relacionada ao exercício da função pública de Lula.

O criminalista Fábio Tofic Simantob, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), disse ao jornal não ser possível afirmar que Lula recebeu o imóvel como vantagem indevida em razão de ocupar o cargo de presidente da República. Nem mesmo vincular a suposta propina à empreiteira. O advogado criminal destaca que a acusação é centrada no depoimento do ex-presidente da OAS e candidato a delator da Lava-Jato, José Adelmário Pinheiro Filho, o Léo Pinheiro. Ele lembra que, de acordo com a sentença, a decisão de dar a reforma de presente ao ex-presidente foi tomada apenas em 2014. “Por essa versão, Lula teria aceitado a promessa de propina, por intermédio de Vaccari (João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT), mas somente após o término do mandato presidencial”, diz Simantob.

O criminalista diz ainda que a sentença do Moro sequer se preocupa em vincular isso a um período em que Lula ainda era presidente. Ele apontou outro trecho flagrantemente falso da decisão condenatória do juiz da Lava Jato: “Ele diz que não é preciso um ato de ofício (praticado durante o mandato) favorecendo a OAS para condená-lo por corrupção, que é, basicamente, o entendimento do mensalão. Basta dizer que ele recebeu propina em razão da função. Entretanto, Moro diz na sentença que a razão da propina foi Lula nomear diretores da Petrobras. Mas em momento algum o juiz aborda se Lula de fato conhecia os malfeitos na Petrobras”. Por essa linha, hipóteses ainda sujeitas à comprovação “foram tratadas na sentença como verdades absolutas, como se já tivessem passado pelo escrutínio da prova”, diz Simantob.

A matéria do Valor diz ainda que “na avaliação de advogados ouvidos pela reportagem Moro partiu da premissa de que Lula é culpado de corrupção”. Há trechos da decisão vistos como decisivos para apontar esse entendimento. Em um deles, Sérgio Moro afirma que “como foi provado o crime de corrupção”, não é relevante discutir se Lula “tinha ou não conhecimento do papel específico dos diretores da Petrobras na arrecadação de propinas”. A sentença, portanto, partiria da premissa de que o réu cometeu o crime de corrupção para depois concluir que, por isso, tinha conhecimento dos ilícitos praticados na Petrobras.

Outro criminalista ouvido pela reportagem, Fernando Castelo Branco, advogado criminal e coordenador do curso de pós-graduação de Direito Penal do IDP-São Paulo, diz que “há uma falta de atenção para o fator preponderante deste recurso”. “O (a intenção) dolo eventual passou a ser o carro-chefe nessa análise de culpabilidade. Com isso, não existe preocupação com a demonstração efetiva do dolo, que no caso de corrupção passiva é um elemento indispensável”, diz ele. “Ao se debruçar sobre a sentença do juiz Sergio Moro, verifica-se que não há uma prova dessa conduta voluntária e intencional por parte do ex-presidente. Tudo está no plano da conjectura e suposição”, completa.

Frederico Crissiuma Figueiredo, Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Seção São Paulo, também foi ouvido e disse que a sentença que condenou Lula tem “evidentes falhas” do ponto de vista técnico. “Valendo-se de sofismas e argumentos pré-concebidos, modifica a acusação inicial e condena com base em presunções sem fundamento probatório necessário para justificar a condenação”, afirmou. Já o criminalista Fernando Araneo, advogado do Escritório Leite, Tosto & Barros, asseverou que a sentença “não demonstra a existência de ato de ofício específico” que indique corrupção passiva.

Há muitos outros diagnósticos que corroboram esses pontos de vista, uma prova de que no mérito não há como sustentar as decisões de Moro e dos desembargadores. Tanto que seus defensores fogem da essência da questão para se beneficiar das generalidades asseguradas pelo oportunismo de quem fica nas platitudes, um comportamento ditado por imperativos politiqueiros fora de qualquer dúvida razoável para quem ausculta a realidade. Está claro que todo esse processo se desenvolveu em dois campos: o da justiça propriamente dita, embora altamente politizado pelo grau de acirramento decorrente da marcha golpista, e o do terreno marrom da mídia.

O primeiro é legítimo e, com todas as restrições necessárias, democrático. O segundo é obsceno e não pode ser debitado ao acaso. Visto por um amador, esse papel da mídia é aceitável. Mas um olhar com lentes argutas revela o quanto esse terreno tem de matreirisse. No fundo, o que esteve em questão nesse processo é a luta do passado com o contemporâneo, a negação do progresso contra a nova clareira aberta com a eleição de Lula em 2002. Meras chicanas apresentadas como lances patéticos, com o agravante que neles está hipotecado o futuro da nação.

Desde o princípio, essas denúncias contra Lula — sustentadas em fontes que se revelaram frágeis como a convicção de um cínico — esbarraram em questões de lógica básica, conforme atestam os juristas que analisam o mérito da questão. Um mergulho nas páginas publicadas sobre esse caso pela mídia revela a maneira como são produzidos — e depois manipulados — as denúncias. O resultado é a construção de uma política do rancor. O ex-presidente tem sido apresentado como o pior governante que já surgiu na história depois de Calígula. Lula foi comparado a Hitler, a campanha em seu favor descrita como defesa de interesses corporativos próprios, seus governos classificados como mais nocivos do que a ditadura militar do AI-5 — e por aí afora, numa sucessão de disparates que seria cômica se não fosse reveladora da intolerância e do fanatismo colocado no coração de setores da sociedade brasileira.

Trata-se, com certeza, de uma das piores pragas que envenenam os atuais usos e costumes do ambiente político brasileiro. Acusações, suspeitas e indícios são divulgados como se fossem provas de culpabilidade — e a pessoa envolvida se vê condenada diante da opinião pública antes que consiga abrir a boca para dizer uma única palavra em sua defesa. Munidos de um visto temporário para o mundo da ética, esses chicaneiros só podem produzir uma conclusão: a democracia está contra eles, o progresso está contra eles, a verdade está contra eles. Suas má-condutas os fazem figuras subqualificadas e desmascaram o título de escolhidos para restaurar a ordem e a moralidade públicas.

Esse poderoso braço do tráfico de informações da direita revive cenas que predominaram no regime militar. São os mesmos métodos da direita, magnetizados pela coesão que emana de clãs que sempre se beneficiaram de regimes que protegem seu senhorio e seus privilégios. São as mesmas faces, tangendo velhíssimos ideais. O ex-governador do Estado de Pernambuco Miguel Arraes disse certa vez que o golpe militar de 1964 não acabou com o processo de redemocratização, iniciado em 1979 com o fim do AI-5. De acordo com ele, quem completou o golpe foram os presidentes Fernando Collor e principalmente Fernando Henrique Cardoso (FHC).

Segundo Arraes, Collor e FHC repetiram, com suas políticas de destruição do patrimônio nacional construído nos anos que precederam os seus governos, a política do general Dutra, que dilapidou os recursos que foram acumulados durante a guerra, no governo de Getúlio Vargas. “O pior foi que Fernando Henrique fez tudo isso com um sorriso na televisão. Os militares ao menos tinham o lado duro”, afirmou. Como diz Renato Rabelo, presidente da Fundação Maurício Grabois, o golpe de 2016 tem como objetivo restaurar a ordem interrompida com a eleição de Lula em 2002. A esta constatação cabe acrescentar que a bandeira dos golpistas hoje é a mesma que foi desfraldada pelos que atentaram contra Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e João Goulart.

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Editor do Portal Grabois