Em 1901, ainda em meio às comemorações dos 400 anos da “descoberta” do Brasil, uma obra sintetizou o espírito de parte das elites brasileiras: Porque me ufano de meu país, do conde Afonso Celso. Estranhamente, ela trazia como subtítulo a frase right or wrong, my country– “certo ou errado, meu país”. Ela bateria todos os recordes de edições e de leitores. O motivo desse sucesso residia no fato de ter sido adotada como livro didático nas escolas brasileiras durante a Primeira República (1889-1930).

Afonso Celso era filho do último presidente do conselho de ministro de Dom Pedro II, Visconde de Ouro Preto. Foi republicano durante o Império e tornou-se um dos maiores defensores da volta à monarquia nos primeiros anos da República. Contudo, não foi do imperador brasileiro que obteve o título de nobreza, orgulhosamente ostentado, e sim de “sua santidade”, o reacionário papa Pio X.

Escrito para seus filhos, tinha por objetivo fortalecer neles o amor à pátria. Logo nas primeiras páginas, podia-se ler: “Quero que consagreis sempre ilimitado amor à região onde nascestes, servindo-a com dedicação absoluta, destinando-lhe o melhor da vossa inteligência, os primores do vosso sentimento, o mais fecundo da vossa atividade – dispostos a quaisquer sacrifícios por ela, inclusive o da vida”.

Ele apresentou onze razões para que o Brasil se destacasse em relaçãoàs demais nações do mundo: a grandeza territorial; a beleza; as riquezas naturais; o clima; ausência de calamidades; as qualidades das raças que entraram na formação do seu tipo nacional; os nobres predicados do povo; o fato de nunca ter sido vencido em guerra; o relacionamento cordial com outros povos; as glórias ainda a se colher e, por fim, a sua história.

Era nítido certo retorno sentimental ao nacionalismo romântico do século XIX com sua exaltação à natureza e valorização de alguns elementos constitutivos de nossa nacionalidade, especialmente os índios e portugueses. Para Afonso Celso, não haveria “no mundo país mais belo” e mais perfeito. Aqui não haveria nem calor nem frio excessivos. Em Nova Iorque, por exemplo, “o calor seria mais sufocante que no Amazonas e Pará”. Graças ao clima, até as feridas e amputações cicatrizariam “mais depressa que nos hospitais do velho mundo”. Mesmo epidemias, como a febre amarela, terror das grandes cidades brasileiras, resultavam numa mortalidade “relativamente pequena” quando comparada à ocasionada por “outras moléstias endêmicas em famosas cidades e capitais opulentas”. Pobre Europa!

Expõe uma das argumentaçõesfavoritas dos “ufanistas” para confirmar a superioridade do Brasil e a inequívoca predileção divina por nós brasileiros: não tínhamos “ciclones, como nos Estados Unidos, inundações, como na Espanha, fomes e pestes prolongadas, como em tantos pontos da Europa e da Ásia”. Dos terremotos “não se apontavam notícia; nem vestígio de vulcões, nem apagados, nem traços de extintos”. Não foi à toa que conclui otimista: “Deus não nos abandonará. Se aquinhoou o Brasil de modo especialmente magnânimo é porque lhe reserva alevantado destino”. Irônica ou tragicamente, no ano do seu lançamento, teve início uma das maiores secas vividas pelo Nordeste brasileiro. Houve fome em grande escala e o deslocamento de populações inteiras. Essa não seria a primeira nem a última seca a assolar o Nordeste brasileiro.

Um aspecto interessante do livro foi ter valorizado a participação do negro na nossa formação social e combatido, ainda que indiretamente, algumas ideias que começavam a predominar entre nós. Retomou uma visão positiva do negro – predominante no período da campanha abolicionista e que em seguida passaria a ser negada pela maioria dos nossos intelectuais. Para Afonso Celso, os “negros africanos (…) sempre se mostraram dignos de consideração, pelos seus sentimentos afetivos, resignação estoica, coragem, laboriosidade. (…) Anima-nos o instinto de independência, como prova a formação do quilombo de Palmares”. É nítida a contradição existente entre a “resignação estoica” e a “coragem” e o “instinto de independência”, apresentados como características inatas dos negros brasileiros.

Ainda segundo Afonso Celso, os mestiços brasileiros não seriam portadores de nenhum tipo de inferioridade física ou intelectual. Por isso, teriam “produzido grandes homens em todos os ramos da atividade social”. São Paulo, onde mais consideravelmente ocorrera “o cruzamento com os índios”, marcharia “na vanguarda da nossa civilização”. A guerra de Canudos também teria mostrado “a tenacidade, a dedicação, a bravura de que são capazes os mestiços”, pois “poucos e mal armados, fizeram frente a poderoso exército”.

O autor contrapunha-se, assim, a nomes como Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e Sílvio Romero, que viam o povo brasileiro como uma sub-raça de mestiços e propunham o seu branqueamento, através da vinda de imigrantes europeus. Afonso Celso retomao mito das três raças formadoras(índios, negros e brancos portugueses). Dentro desse esquema, a guerra contra os holandeses teria sido o momento de constituição da nossa nacionalidade. Durante o seu desenrolar, pela primeira vez ocorrera a união de todos os grupos étnicos aqui existentes em defesa da Nação ainda em construção. “O Brasil”, afirmou ele, “é perfeitamente homogêneo, material e moralmente, pelo lado social e pelo lado étnico, pois nele se cruzam e se fundem todas as raças”.

A contraface do não-racismo – ou do “racismo mitigado”, como talvez seja mais preciso – de seu livro foi a tentativa de negar a existência do preconceito racial em nosso país e na subestimação do caráter perverso do instituto da escravidão entre nós. Ele tendia a considerar os escravistas brasileiros “menos bárbaros que os de outros países, especialmente os dos Estados Unidos” e que teria havido “raros os senhores cruéis”. Os proprietários de escravos, no geral, “tratavam, os negros como cristãos e não lhes recusando os consolos da religião”.
Afonso Celso também, como quase todos os monarquistas do período, era defensor ardoroso da colonização e da herança portuguesas. Escreveu: “dá mostras de injustiça e ingratidão o brasileiro que ataca ou deprime Portugal.”. A conquista portuguesa “não se caracterizava pelas violências da espanhola (…). O nosso regime colonial foi mais suave que o de quase todos os povos americanos”. A história não registraria notícia de “um povo que, com menos recursos, mais fizesse do que o português”. “Onde quer que os portugueses fixem domicílio, na Ásia, na África (…) elevam monumentos à caridade e à instrução”, conclui o autor. Nada mais falso.

Os fatos, no entanto, desmentem tais teses. A instrução jamais seguiu os passos da colonização portuguesa na América. As faculdades somente foram abertas após a chegada da família real (1808) e a primeira universidade seria criada na terceira década do século XX. Na África negra o resultado da colonização portuguesa, no campo da educação e em todos os demais, foi desastroso.
 
O povo brasileiro segundo Afonso Celso
 
Afonso Celso foi um dos primeiros autores a procurar definir, de maneira mais sistemática, quais as características distintivas do povo brasileiro em relação a todos os outros. Os predicados dos brasileiros seriam: o sentimento de independência; a hospitalidade; a afeição à ordem e à paz; a paciência e resignação; a doçura e o desinteresse; o escrúpulo no cumprimento das obrigações contraídas; o espírito extremo de caridade; a acessibilidade; a tolerância e ausência de preconceitos (de raça, religião, cor, posição); a honradez no desempenho das funções públicas.

Por fim, chegou a uma conclusão oposta à de Paulo Prado que, logo no início de Retrato do Brasil, escreveria: “Numa terra radiosa vive um povo triste”. Na narrativa de Afonso Celso, o povo brasileiro “passava dias mais felizes que o alemão, o francês, o inglês, dias mais tranquilos, mais risonhos, mais esperançosos”.

O livro parece ser uma resposta ao pessimismo de setores das elites brasileiras quanto às possibilidades futuras do Brasil, mas, ao “forçar a nota” no sentido contrário, produziu uma visão idílica e também conservadora do país. Conservadora porque não nos permitia ver as profundas injustiças e contradições sociais que o dilaceravam e, portanto, impossibilitava a apresentação de propostas condizentes no sentido de superá-las. A pátria idealizada encobria o país real. Produziu-se assim uma ideologia amplamente favorável ao status quooligárquico.

Ainda dentro de sua concepção do Brasil como uma “terra sem males”, Afonso Celso escreveu: “Não conhecemos proletariado, nem fortunas colossais que jamais hão de acumular entre nós, graças aos nossos hábitos e sistemas de sucessão. Nem argentarismo, pior que a tirania, nem pauperismo, pior que a escravidão. Nem cumiadas, nem abismos, nem transições bruscas, nem desespero embaixo, porque se pode sempre esperar atingir o grau superior, nem desdém soberbo no alto, porque este se acha mui vizinho do grau inferior, não sendo lícito aos que aí vêem considerarem-se de espécie diversa da dos seus semelhantes menos colocados. No Brasil, o trabalho anda à procura do homem e não o homem à procura do trabalho. Ninguém, querendo trabalhar, morrerá de fome. Parece país de milionários, tão largamente se gasta”.

Sobre a honradez no desempenho das funções públicas,afirmou: “Os homens de Estado costumam deixar o poder mais pobres do que nele entraram (…). Quase todos os homens políticos brasileiros legaram miséria às suas famílias. Qual o que já se locupletasse à custa do benefício público?”. No entanto, a suposta “honradez no desempenho de funções públicas” era questionada diariamente na imprensa oposicionista antioligárquica. Os primeiros movimentos de contestação tenentista (1922-1924) se deram, justamente, em nome da defesa da moralidade pública e da transparência eleitoral.

O país que descreveu Afonso Celso jamais existiu. Era uma construção ideológica, produzida nos salões aristocráticos do Instituto Histórico e Geográfico. O Brasil do final do século XIX e início do século XX, ao contrário do afirmado pelo autor, era um verdadeiro barril de pólvora – resultado das enormes assimetrias sociais existentes, vindas desde os tempos coloniais. Basta lembrarmos os levantes camponeses de Canudos e do Contestado, as revoltas da Vacina e da Chibata, para ficarmos apenas em alguns episódios mais conhecidos da história brasileira nos primeiros anos da República. Como é possível observar, mais do que uma tentativa de elevar a autoestima dos brasileiros, era um movimento visando a encobrir os vícios de nossas classes dominantes.

Parte importante do livro dedicou-se à história brasileira. Cinco momentos, segundo ele, mereceriam “celebração épica”. Eram: o dos jesuítas, o dos bandeirantes, a guerra contra os holandeses, Palmares e a retirada de Laguna durante a Guerra do Paraguai. Novamente, temos incluído um dos feitos mais importantes dos escravos brasileiros. “E da valente república de Palmares não permanece senão vaga reminiscência, bastante, contudo, para que um poeta inspirado a transforme em magnífica epopeia”, concluiu. Curiosamente, num mesmo lance retórico louvou os algozes (os bandeirantes) e as vítimas (os palmarinos).

A Proclamação da Independência e a Abolição da Escravidãotambém mereceram capítulos especiais, mas a Proclamação da República nem ao menos foi citada. O mesmo ocorreu quando apresentou “os grandes nomes da nossa história”. Sobre o imperador Dom Pedro I dissertou: “possuía altas qualidades: cavalheirismo, coragem, franqueza (…). Se faltas cometeu, prestou serviços que as resgatam”. O seu grande herói era Dom Pedro II, ao qual dedicou o maior espaço entre os “grandes nomes”… da humanidade. Considerou o ex-monarca “o mais eminente dos brasileiros, o mais nobre dos americanos (sem excetuarmos Washington e Bolívar), uma das figuras mais simpáticas e venerandas da história universal”. Na sua sinopse histórica, contudo, pouco espaço foi dedicado a Tiradentes, o grande herói da Republica recém-proclamada. A mesma coisa em relação aos demais líderes republicanos.

O capítulo sobre a Abolição é quase todo dedicado a justificar o processo gradual pelo qual ela se deu. “Se é exato que o Brasil demorou em abolir a escravidão, não menos certo é que em parte alguma a questão foi resolvida de modo mais inteligente e honroso (…). Não nos deve envergonhar o fato de havermos mantido a maldita instituição. Quase todos os povos o praticaram (…). Os denominados escravocratas jamais se opuseram radicalmente à libertação; queriam somente que ela se efetuasse em prazo longo, e mediante uma indenização, destinada à reorganização do serviço agrícola. Nunca pegaram em armas para preservar o triste regime, herdado dos antepassados (…). A emancipação se operou progressivamente, para que a produção nacional não sofresse. A profunda reforma realizou-se de modo pacífico”.

Essa visão edulcorada do Brasil, segundo Dante Moreira Lima, se deve ao fato de Afonso Celso estar “fechado em sua classe social e na região litorânea, de forma que pode ignorar totalmente as dificuldades de outras classes e outras regiões. Por isso, pode ver o Brasil como um país de facilidades – pois estas eram reais para a classe mais rica, e a observação desta última poderia dar a impressão de um país de milionários afáveis, generosos e honestos”.

No final do livro, entretanto, apresentou os perigos que acreditava ameaçar o país. Entre eles incluiu, de maneira subliminar, o próprio regime republicano. “Apenas uma apreensão assalta o espírito de quem medita sobre o seu destino (do Brasil), se continuar a ter maus governos e instituições incompatíveis com sua índole. São essas as apreensões: separação do território nacional em vários Estados; intervenção nos seus negócios de alguma potência estrangeira”. As instituições incompatíveis com nossa índole eram justamente as criadas pela República.
 
Dois nacionalismos em disputa
 
No início da República, se confrontaram dois tipos distintos de “nacionalismo” – uma disputa que se traduziu no campo da interpretação da história brasileira. O primeiro tipo era o defendido pelos republicanos radicais, denominados jacobinos. Estes tinham em comum uma visão bastante negativa da colonização portuguesa e da atuação da dinastia dos Bragança à frente do Estado brasileiro. Por isto, criticavam a historiografia dominante – produzida pelos Institutos Históricos e Geográficos – por ser favorável à monarquia (e a influência da Igreja Católica) e contar a história do país sob o ponto de vista da aristocracia agrária.

Dentro desse esquema interpretativo, em 1893 foi publicado Festas Nacionaisde Rodrigo Otávio. No prefácio o escritor republicano Raul Pompeia elogiou efusivamente a obra, pois ela havia abandonado as “hosanas hipócritas” e as “ufanias vãs” pela “exposição crua da verdade”. Alguns anos depois, em 1897, saiu o livro Revoluções brasileirasde Gonzaga Duque. Era também uma resposta à historiografia monárquica, acobertadora das “sucessivas e sangrentas guerras que vieram conduzindo a nova nação sul-americana à posse do governo do povo pelo povo”. O autor acreditava que a Proclamação da República era parte integrante do processo de emancipação da nação e do povo brasileiro. Todos os grandes acontecimentos da nossa história conduziram a ela. Era natural que esses escritores republicanos tivessem certa simpatia pela primeira República do mundo moderno: os Estados Unidos.

Os historiadores monarquistas, por outro lado, defendiam a colonização portuguesa, os feitos da monarquia brasileira e o papel positivo do catolicismo. A história do Brasil monárquico e cristão seria um círculo virtuoso em contraposição às repúblicas latino-americanas marcadas pela violência e pelo caudilhismo. Eram também anglófilos e, por isso mesmo, profundamente críticos aos Estados Unidos.

Um clássico do antiamericanismo monárquico é o livro A ilusão americana, escrito por Eduardo Prado em 1893. Para este, o povo norte-americano era governado “com muito mais vigor e tirania” que na Rússia czarista e, quase parodiando os marxistas, escreveu: “a forma republicana burguesa, como existe na França e nos Estados Unidos, é a que mais protege os abusos do capitalismo”. Esse era um exemplo típico daquilo que Marx e Engels chamaram de “socialismo reacionário” nos trópicos.

Uma pergunta ainda fica. Por que a obra de um monarquista empedernido foi adotada e difundida por governos republicanos? Esse fenômeno somente poderá ser entendido no contexto da disputa e da derrota política sofrida pelos republicanos radicais (jacobinos), representantes das camadas médias urbanas. Os vencedores foram os “moderados”, ligados aos interesses dos produtores, financiadores e exportadores do café de São Paulo.

A obra de Afonso Celso foi publicada durante o governo Campos Salles – o consolidador da República Oligárquica. Em 1902 sucedeu-o outro paulista – e ex-monarquista– Rodrigues Alves. Neste período, vários monarquistas históricos – como Joaquim Nabuco e Rio Branco – fizeram as pazes e aderiram à República. Assim, a ala republicana radical foi sendo excluída do poder e quase desapareceu enquanto força política. Sua última – e efêmera – aparição ocorreu durante a Revolta da Vacina em 1904. O ambiente político passou a ser amplamente favorável à visão histórica e ao tipo de nacionalismo defendido pelo conde Afonso Celso.

Quando a denominada República Velha começou a entrar em crise, especialmente na década de 1920, a obra de Afonso Celso passou a ser objeto de críticas corrosivas por parte dos intelectuais vinculados ao modernismo. O termo “porque-me-ufanismo” virou sinônimo de nacionalismo ingênuo e conservador. Abriu-se então uma nova fase na história brasileira.
 
* Este texto compõe o ensaio Descobrindo o povo brasileiro, publicado no livro Marxismo, história e revolução brasileira: Encontros e desencontros (Editora Anita Garibaldi, 2009).
 
**Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.
 
Bibliografia
 
CELSO, Afonso. Porque me ufano do meu paiz– Right or wrong, my country. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, s/d.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro.São Paulo: Livraria Pioneira, 1973.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na primeira república. São Paulo: Brasiliense, 1990.