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Essa discussão é antiga. A rigor, ela começou com Aristóteles e seus estudos sobre a lei do valor. Foi Aristóteles, o maior pensador da antiguidade, que descobriu, há mais de dois mil anos, que as mercadorias têm dois valores: um valor de uso e um valor de troca. Aristóteles dizia que mercadorias de valores de uso diferentes podem ter valores de troca iguais. Cinco camas, valem uma casa, dizia ele. A troca existe porque há uma medida de igualdade, escreve Aristóteles. As camas e a casa permitem uma medida de igualdade. Mas o que objetos tão diferentes como camas e casas têm de igual? Aristóteles se pergunta, sem conseguir responder. A resposta só viria no final do século 18, com David Ricardo. O que há de igual nas camas e na casa, objetos de valores tão diferentes, diz Ricardo, é o trabalho humano envolvido na produção dessas mercadorias.

E por que Aristóteles não conseguiu descobrir que o trabalho humano é a medida da igualdade do valor? Marx responde, em O Capital, a grande obra de crítica à economia clássica — segundo Engels, o projétil mais temível atirado à cabeça dos burgueses —, que Aristóteles era um filósofo de uma sociedade baseada no trabalho escravo. A compreensão da igualdade do valor de todos os trabalhos humanos só pôde existir quando a escravidão do mundo antigo e a servidão do mundo medieval foram superadas — a partir do momento em que a igualdade política entre os homens se firmou. O patrão é igual ao operário. O latifundiário é igual ao camponês. Foi a revolução francesa que proclamou essa verdade-síntese, essa verdade política fundamental: todos os homens são iguais.

Clima obscurantista

Mais de 200 anos depois da revolução francesa, por que as desigualdades sociais são tão brutais? A resposta está na separação do conceito de liberdade do conceito de igualdade — a origem da violência social. Esse tema constitui uma das discussões mais inflamadas que o mundo terá que vencer no futuro próximo. O desafio que o tema impõe e as políticas que têm se apresentado para enfrentá-lo, combinados, funcionam como uma bomba-relógio cuja contagem regressiva não está longe de acabar. Até hoje a maioria das sociedades enfiou a cabeça na terra ao tratar da questão. Em pouco tempo, no entanto, não haverá mais espaço para posturas de avestruz. A violência é um problema sob todos os pontos de vista. E um problema coletivo, de ordem legal e principalmente social.

As sociedades costumam se relacionar com as causas da violência em um clima obscurantista. Em boa medida, os fantasmas que habitam esse terreno são alimentados pelo modo como o assunto é apresentado para a opinião pública. Periodicamente, matérias a respeito aparecem sob trilha sonora grave ou diagramação sombria. De fato, há casos terríveis. Mas por conta da forma como essa realidade é retratada muita gente fica com a impressão de que não há alternativa para o abismo. E acaba tirando conclusões e erigindo crenças baseadas em visões ignorantes e superficiais. Uma das primeiras inflexões que devem ser feitas se quisermos jogar alguma luz sobre o tema é a constatação de que o porte de arma não é uma questão de foro íntimo. Não é assunto restrito ao que um sujeito faz no recato de sua vida privada e que não diz respeito a mais ninguém.

Horizontalidade social

A decisão sobre o uso ou não de uma arma não cabe ao indivíduo. É assunto para o juízo da coletividade por conta do potencial de danos que ele pode causar a outras pessoas. A liberação é, a rigor, uma postura conservadora, baseada em falsos argumentos morais. Essa corrente de pensamento fala em liberdades individuais — ou seja: liberdade para poucos — para impor ao indivíduo a lei do mais forte. Combina com sociedades de hierarquias autoritárias. O uso indiscriminado de armas é uma postura liberal, baseada no princípio de que as liberdades individuais de alguns estão acima das liberdades coletivas. Para essa corrente de pensamento, que combina com sociedades verticalizadas, a coletividade nunca pode interferir na vida de um indivíduo.

Do ponto de vista de quem defende a horizontalidade social, ao contrário, emerge a necessidade de instar a coletividade a chamar para si a jurisdição sobre o tema. Senão o caminho que leva à convergência das armas com o crime fica desobstruído. Uma dessas verdades fossilizadas é que a repressão é o melhor método para a sociedade enfrentar a violência. Os Estados Unidos são o grande sustentáculo desse ponto de vista. Os norte-americanos o passaram adiante, mundo afora, como o fizeram com a Coca-Cola e o McDonald’s. Os adeptos da repressão defendem que a violência deve ser combatida meramente com operações policiais e militares. É isso que tem acontecido ao longo das últimas décadas. Contraditoriamente, nesse período a violência floresceu como nenhum outro negócio no mundo. Alguma coisa está errada.

Os líderes da violência

Que a violência precisa ser combatida, não há dúvida. Mas é provável que tenhamos que rever o plano, porque a tática da repressão pura e simples está de joelhos diante do poderio do crime. Enfim, a questão é: como ser eficiente nesse combate? Não será, certamente, com a causa da violência que combate a violência. Por trás dessa lógica há interesses muito poderosos. A repressão isolada não faz muito além de empurrar a violência cada vez mais para longe da lei, da luz do dia, da jurisdição dos Estados nacionais. E é lá, na escuridão da noite, no vazio legal, no vácuo do poder público, que a violência viceja. Seus líderes criam sua própria lei, diversificam suas atividades ilegais, nutrem vários outros ramos do crime com o excedente de seus lucros, escravizam populações trabalhadoras, compram políticos, terras, policiais, vidas. As armas alimentam suas almas, inflam seus bolsos, revigoram seu poder.

Para sermos eficientes no combate à violência, é necessário termos claras duas coisas. Com relação à oferta, é preciso controlar com rigor o comércio de armas. É preciso trazer esse setor da economia para a luz do dia, onde possa ser fiscalizado como qualquer outro cujos produtos são controlados. Isso iria minguar dramaticamente a margem de lucro dos cartéis e em conseqüência esvaziar seu poder econômico e político. O comércio indiscriminado de armas terminaria seus dias como um problema ordinário de contrabando, a exemplo do que enfrentam outras indústrias. Aí é preciso repressão. A outra coisa é: o que o ser humano busca nas armas, nas drogas, na religião ou nas jornadas de trabalho dos workaholics não é questão que possa ter resposta provida por iluminados. Ela é afeita à coletividade. A questão do comércio de armas e munição insere-se aí e passa muito longe da lógica bolsonarista.