Um camarada que assistiu aos últimos momentos de João Amazonas, no quarto de hospital, há 18 anos, relata que uma enfermeira tentava acalmá-lo dizendo algo como “já já o senhor terá alta e vai pra casa, onde terá tudo o que o senhor gosta”. “Eu gosto mesmo é da Ediria” – teria respondido nestas que talvez tenham sido suas últimas palavras, antes de entrar na crise final que o levou da vida. Esta era a face afável de João Amazonas – a artista plástica Edíria Carneiro foi sua companheira por 56 anos, que esteve a seu lado no enfrentamento das grandes batalhas do Partido Comunista do Brasil desde 1946.

Em seus últimos dias, no hospital, deixou com este mesmo camarada um bilhete onde dizia que seu corpo devia ser cremado e as cinzas lançadas às margens do rio Araguaia, para se juntar aos companheiros que tombaram na Guerrilha do Araguaia. Esta é a face ardente do revolucionário que, vendo a proximidade da despedida deste mundo, fazia do destino de suas cinzas um ato político acenando para as mudanças políticas e sociais a que dedicou sua vida desde a filiação ao Partido, em 1935, quando tinha 23 anos de idade, até  final, em 2002, aos 90 anos. Foram 67 anos de atividade cotidiana pela construção e reconstrução do Partido que ele comparava à mitológica Fênix, a ave que renasce de suas cinzas. 

Este era João Amazonas, um homem simples e sensível, um pensador sofisticado, um dirigente partidário atento. Era muito afável nas relações pessoais, mas ficava muito bravo – e duro – quando enfrentava ataques ao Partido, que via como a grande ferramenta para dirigir e orientar a luta do povo pelo socialismo, pelo progresso social.

 

oão Amazonas com Lula e Renato Rabelo, em 1989 (Foto: Arquivo PCdoB)

Sua preocupação fundamental em suas quase sete décadas de atividade comunista foi, primeiro, manter firme e em pé a bandeira da foice e do martelo e, depois, que o Partido tivesse uma direção – um estado maior – estável, maduro e de sólida formação marxista leninista. Tanto que, em minha opinião, permitiu-se despedir da vida depois de dirigir a primeira transferência tranquila e sem contestações da direção do mais alto cargo do Partido, no 10º Congresso, em dezembro de 2001, quando passou a direção para Renato Rabelo sob aplausos gerais e grande unidade. Foi a primeira vez, ao longo de quase oitenta anos de história partidária, que a alta direção era transmitida de forma tranquila – e regimental – sinalizando a grande maturidade política e organizativa alcançada pelo PCdoB. A tarefa de sua vida estava concluída!

Marxista-leninista inflexível, cuja atividade revolucionária e política sempre foi ligada ao povo de forma radical, João Amazonas foi um político refinado que defendia sempre a mais ampla aliança de democratas, progressistas e patriotas em torno de um programa capaz de fazer avançar o progresso social. Amplitude que, conta Victor Márcio Konder no livro “Militância”, se manifestou por exemplo na década de 1950. Havia então alguns problemas no Partido em Pernambuco, e o conselho dado por João Amazonas aos enviados pela direção nacional para ajudar os camaradas pernambucanos foi: antes de agir, é preciso encontrar por lá as personalidades e forças democráticas, progressistas e avançadas com as quais possamos trabalhar juntos. Sempre defendeu a necessidade de unir os democratas, os progressistas e os patriotas – o último grande exemplo dessa ação foi a criação da Frente Brasil Popular, em 1989, que lançou, com o PT,  a primeira candidatura de Lula à presidência da República.

João Amazonas foi também um grande, e permanente, formador de quadros partidários. Sempre insistiu na necessidade do completo domínio da teoria marxista, do leninismo, da dialética materialista, que sempre encarou como fundamental para a atividade partidária madura e consequente. Isso fez dele uma das grandes lideranças comunistas do século 20, reconhecido no Brasil e no movimento comunista internacional.

Foi um dirigente surpreendente. Sabia ouvir as opiniões dos demais e exprimia-se sempre de forma calma, mas com muita firmeza.

Teve papel central no enfrentamento da maior crise da causa comunista no século 20, marcada pelo fim da União Soviética e a triunfante propaganda ideológica capitalista que pregava o fim do socialismo e o enterro do pensamento marxista.

João Amazonas compreendeu que só havia um rumo para enfrentar as ameaças daquela conjuntura: a defesa e reafirmação do pensamento marxista, de um lado, e a análise profunda das condições que levaram à desagregação. Indicou o papel nocivo do engessamento da teoria, ocorrido na URSS desde a década de 1930, como o cerne da crise do marxismo. E enfatizou que só havia um caminho para enfrentá-la: o rompimento radical com o dogmatismo, o domínio cada vez maior da dialética materialista, o abandono do modelo único de revolução e socialismo, o estudo da realidade nacional e das condições de transição para o socialismo (que decorre entre outras coisas das diferentes realidades nacionais e do amadurecimento das contradições anticapitalistas). Com isso, já no último período de sua vida, Amazonas armou o partido das condições teóricas que para fortalecer sua organização e coesão e avançar num momento em que tudo parecia desmoronar, em que outras organizações baixavam a bandeira da revolução e do socialismo. João Amazonas indicou o caminho oposto que manteve alta e ereta a bandeira vermelha do Partido, da foice e do martelo, da luta pelo socialismo.

João Amazonas tinha a simplicidade dos homens do povo. Falava a linguagem da gente comum, com a profundidade dos grandes pensadores, em busca do objetivo de sua vida, a construção e fortalecimento do Partido Comunista do Brasil. Esta foi sua maior contribuição à luta revolucionária: o legado de um partido avançado e moderno, que mantém o marxismo-leninismo como orientação para o programa comprometido com a conquista do socialismo e com os desafios contemporâneos.

*José Carlos Ruy – Jornalista, escritor, estudioso de história e do pensamento marxista e colunista do Portal Vermelho.