“Quando se escrever a história da escravidão no Brasil, não faltará algum escritor venal que venha colocar esses escravocratas entre os grandes cooperadores na redenção dos escravos.” (Editorial do jornal abolicionista A redenção, de 29 de abril de 1888).

Desde o início do século 19 existia uma forte pressão internacional pela abolição da escravidão nas Américas. A Grã-Bretanha, principal potência capitalista da época, passou a exigir que países como o Brasil colocassem fim ao tráfico intercontinental de escravos. Fazia isso menos por razões humanitárias do que por razões econômicas. Nos séculos anteriores, a burguesia inglesa foi quem mais se beneficiou do tráfico negreiro. Este, inclusive, foi uma das bases para o seu rápido processo de acumulação de capital. Contudo, em 1807, ela aboliu o tráfico nas suas colônias. Os tempos, agora, eram outros.

Em 1831, por pressão inglesa, o governo brasileiro proibiu a importação de escravos africanos. No entanto, mais persuasivos que o “imperialismo” britânico eram os grandes comerciantes e latifundiários escravistas, forças hegemônicas no interior do Estado Nacional nascido após a nossa Independência. O tratado jamais foi aplicado e, por isto mesmo, foi ironicamente encarado como uma lei apenas “para inglês ver”.

Naqueles anos aumentou o número de escravos negros introduzidos no Brasil. Isto enfureceu a principal avalista internacional de nossa Independência. As coisas tenderam a se agravar após a abolição completa da escravidão nas colônias inglesas. No ano de 1845 o parlamento britânico aprovou uma lei – a Aberdeen –, que dava à sua marinha o poder de apreender navios negreiros ilegais e julgar os traficantes.

Fruto daquela medida surgiu entre nós um nacionalismo de conteúdo escravista. As elites conservadoras, sempre subservientes aos interesses estrangeiros, passaram a radicalizar seu discurso contra a intervenção inglesa nos negócios internos do país. Um patriotismo deveras suspeito. Essas mesmas classes não se envergonhavam da contratação de mercenários estrangeiros para reprimir os movimentos insurrecionais no Nordeste ou se inibiam em relação aos volumosos empréstimos externos feitos pelo governo brasileiro para pagar a nossa Independência.

A ação da marinha inglesa tornou-se cada vez mais ousada e provocativa. Todos os navios suspeitos de tráfico eram interceptados e alguns afundados. O mar territorial passou a não ser mais respeitado. Até navios que faziam comércio de escravos entre províncias foram atacados. A tensão aumentou. Brasil e Inglaterra chegaram à beira de entrar em guerra. Diante desse quadro completamente desfavorável, o governo imperial e os escravistas tiveram que ceder. Era preciso ceder os anéis (do tráfico) para não perder os dedos (a escravidão). Em 1850 foi aprovada a Lei Euzébio de Queirós que pôs um fim definitivo ao comércio infame.

Por volta da metade do século XIX, a abolição do tráfico e da própria escravidão era anseio de amplos setores da sociedade brasileira. O senador Antônio Carlos de Andrade chegou mesmo a defender a ação da marinha de guerra britânica. Mais tarde, o abolicionista e estadista Joaquim Nabuco aplaudiu aquela atitude, e somente criticou que a ação inglesa tenha sido voltada apenas contra países mais fracos e não contra os Estados Unidos.

Em resposta ao nacionalismo espúrio das elites escravistas se levantaria a voz de um dos maiores poetas brasileiros que, nas estrofes de seu poema épico O Navio Negreiro, cantou: “Existe um povo que a bandeira empresta/ Para cobrir tanta infâmia e cobardia! / E deixa-a transformar nessa festa/ Em manto impuro de bacante fria! / Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta, / Que impudente na gávea tripudia?! / Silêncio! (…) Musa! chora, chora tanto/ Que o pavilhão se lave no seu pranto!/ (…) Auriverde pendão de minha terra,/ Que a brisa do Brasil beija e balança,/ Estandarte que a luz do sol encerra,/ E as promessas divinas da esperança/ Tu, que da liberdade após a guerra/ Foste hasteado dos heróis na lança,/ Antes te houvesse roto na batalha,/ Que servires a um povo de mortalha!”.

O fim do tráfico negreiro permitiu que parte dos capitais investidos no tráfico se desviasse para outros setores da economia, especialmente à incipiente indústria. Entre os que comemoraram a medida estava o Barão de Mauá, o pai (ou avô) da burguesia industrial brasileira. Mas esta medida era ainda insuficiente para uma expansão maior das relações de produção capitalista. Isto exigia a formação de um amplo mercado de mão-de-obra formalmente livre, que era incompatível com a predominância do escravismo.

No ano de 1864, trinta e três anos depois da primeira lei que proibiu a entrada de escravos negros, um decreto emancipou os africanos que aqui haviam entrado ilegalmente desde 1831. Calculava-se que ainda existissem cerca de 500 mil negros nesta situação. Os fazendeiros tudo fizeram para que essa lei também ficasse apenas no papel. Afinal, era muito difícil para os pobres negros escravizados ilegalmente comprovarem a sua situação. Em torno destes casos travou-se uma acirrada luta jurídica e política na qual se destacou o eminente advogado abolicionista negro Luís Gama.

O movimento abolicionista adquiriu maior amplitude e ganhou amplas parcelas da população, excetuando-se os grandes fazendeiros. A luta dos abolicionistas recebeu apoio vindo do exterior. Várias mensagens e vários manifestos de intelectuais progressistas europeus e americanos foram endereçados ao governo imperial e ao parlamento brasileiro. Estes, em 1871, aprovaram a Lei do Ventre Livre que dava liberdade a todos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data.

Os escravistas entravam na defensiva política e procuravam manobrar, adotando medidas protelatórias. Sabiam que a abolição era inevitável e que seria necessário adiá-la o quanto fosse possível. O próprio projeto aprovado dava aos proprietários o direito de manter o “liberto” sob sua guarda até os 21 anos de idade. A nova lei desorganizou momentaneamente o movimento abolicionista, afastando dele os elementos mais conciliadores.

No início da década de 1880, a campanha ganhou novamente as ruas. Ela adquiriu maior dimensão e mudou de qualidade. O escravismo, ainda mais acuado, buscou deter a avalanche abolicionista com novas medidas protelatórias. Em 1885 o parlamento imperial aprovou a Lei do Sexagenário. Esta libertava os escravos com mais de 60 anos, mas os obrigava a trabalhar compulsoriamente durante três longos anos. Exigia também que o liberto ficasse no município por cinco anos, sob ameaça de prisão.

De um lado, o Estado escravista tentou manobrar com uma legislação de fundo reformista-conservador; de outro, endureceu a repressão contra os abolicionistas mais radicais. Ampliou a pena de prisão aos que organizassem fugas de escravos. O próprio dom Pedro II, considerado por muitos como um simpatizante da abolição, não titubeou em destituir os presidentes das províncias do Ceará e do Amazonas por terem permitido a abolição nos seus estados. Puniu também militares abolicionistas, como Sena Madureira. Os fazendeiros escravistas resistiram o quanto puderam. Organizaram-se nos Clubes de Lavoura e formaram milícias armadas para combater os abolicionistas. Jornais foram empastelados e militantes agredidos e mesmo mortos.

A Lei do Sexagenário não conteve o ímpeto dos abolicionistas. Ninguém aceitava mais medidas de caráter protelatório. As estratégias reformistas pareciam derrotadas em 1886. Diante da ineficácia dos métodos moderados — exclusivamente jurídicos e parlamentares —, uma parte dos ativistas aderiu às posições mais radicais passando a organizar fugas de escravos.

Assim foi se formando uma ampla frente abolicionista envolvendo escravos, a pequena-burguesia, a burguesia industrial e o jovem proletariado. Cresceu em proporção geométrica o número dos casos de fugas de escravos. Estima-se que 1/3 dos 173 mil escravos tenha escapado das fazendas paulistas nos últimos anos da escravidão. A cidade de Rio Claro chegou a ficar sem nenhum escravo nas suas fazendas de café. A luta de classes, especialmente dos escravos, teve um papel fundamental para a desagregação desse modo de produção arcaico.

Em outubro de 1887, o escravismo sofreu um duro golpe quando o marechal Deodoro da Fonseca, presidente do Clube Militar, solicitou que não se utilizasse o Exército na caçada de escravos fugitivos. Aumentou, assim, a cisão no aparato repressivo e os fazendeiros não podiam mais contar com o braço armado do Estado imperial.

Portanto, a libertação dos escravos não ocorreu por decisão voluntária dos fazendeiros paulistas, e muito menos foi uma dádiva da família imperial. Ela foi fruto de uma grande luta popular, que envolveu diretamente os próprios escravos. O decreto que aboliu definitivamente a escravidão foi assinado em 13 de maio de 1888. Mesmo assim, no projeto inicial, enviado pelo ministério da princesa Isabel, a abolição era acompanhada por alguns condicionantes: ressarcimento monetário aos proprietários, obrigação dos libertos de prestarem serviços compulsórios até o final da safra e de permanecerem no município por seis anos. Esta foi a última tentativa dos escravistas para adiar o inadiável.

A pressão popular e a recusa dos setores liberais em aprovar o projeto daquela forma o levaram a ser alterado. Expressiva foi a declaração de voto do deputado escravista Lourenço de Albuquerque: “Voto pela abolição porque perdi a esperança de qualquer solução contrária; seriam baldados os esforços que empregasse; sendo assim, homenagem ao inevitável, à fatalidade dos acontecimentos.”.

Neste sentido discordamos da opinião do eminente sociólogo Octávio Ianni que defendeu a tese de que a Abolição teria sido uma “coisa de branco”, e não teria sido “a casta dos escravos que destruiu o trabalho escravizado”. Para ele, a escravidão foi extinta “devido a controvérsias e antagonismos entre os brancos ou grupos e facções dominantes”. Esta ideia é hegemônica na historiografia e na sociologia brasileira, excluindo-se aqui os nomes Clóvis Moura, Robert Conrad, Jacob Gorender e Décio Saes. Para estes, a Abolição foi também obra da luta abnegada dos próprios escravos.

 

Gazeta anuncia abolição (Foto: Arquivo)

Reformistas e radicais

No interior do movimento abolicionista se chocaram duas correntes distintas: uma reformista e outra radical-revolucionária. Esta última tinha como base social as classes médias urbanas (advogados, jornalistas, médicos e pequenos funcionários públicos) e os trabalhadores livres (ferroviários, cocheiros, jangadeiros, tipógrafos, operários fabris). Articulava uma ativa propaganda, através da imprensa, e métodos ilegais, como patrocínio de fugas de escravos. Dois expoentes deste abolicionismo radical eram Luís Carlos de Lacerda, no Rio de Janeiro, e Antônio Bento, em São Paulo. O último organizou e dirigiu o movimento dos caifazes, que ficou famoso pelas espetaculares fugas de escravos que organizou no interior paulista.

O abolicionista paulista Raul Pompeia escreveu: “A humanidade só tem a felicitar-se quando um pensamento de revolta passa pelo cérebro oprimido dos rebanhos das fazendas. A ideia de insurreição indica que a natureza humana vive. Todas as violências em prol da liberdade violentamente acabrunhada devem ser saudadas como vendetas santas. A maior tristeza dos abolicionistas é que estas violências não sejam frequentes e a conflagração não seja geral.”. Na mesma linha, afirmou José do Patrocínio (na imagem ao lado): “Contra a escravidão todos os meios são legítimos e bons. O escravo que se submete atenta contra Deus e contra a civilização; o seu modelo, o seu mestre, o seu apóstolo deve ser Spártaco.” Em geral, os radicais eram antimonarquistas e defendiam a reforma agrária.

Por outro lado, os reformistas abominavam todas as ações que buscavam envolver o povo, e particularmente ousassem mobilizar a massa escrava. Um expoente deste tipo de abolicionismo era Joaquim Nabuco. Ele afirmava: “(…) é no parlamento, e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade.”. O abolicionismo reformista tinha como base social os dissidentes das oligarquias rurais e altos escalões da burocracia estatal. Em geral, não articulavam a luta pela libertação da escravidão e a necessidade do fim da monarquia. Nabuco, por exemplo, sempre foi um monarquista fiel. Este setor seria fortemente reforçado pela adesão, de última hora (diria, mesmo, último minuto), dos fazendeiros paulistas à causa abolicionista.

Em meados de 1887 ocorreu o auge do movimento de fugas de escravos, colocando a lavoura paulista em profunda crise. As autoridades provinciais pediram reforço militar ao governo imperial. O barão de Cotegipe enviou um navio de guerra e um batalhão de infantaria. Em dois de junho daquele ano, Campos Salles iniciou o processo de emancipação “voluntária” dos escravos — com cláusulas de serviço por vários anos — junto aos fazendeiros paulistas.

Entre os novos convertidos à tese abolicionista estava o paulista Antônio Prado, ex-ministro da agricultura do ministério Cotegipe. Prado havia sido um dos principais alvos dos abolicionistas ao ter regulamentado a legislação emancipacionista de maneira conservadora um ano antes. Foram políticos como este, ligados à elite agrária paulista, que assumiram o comando e tiveram maior visibilidade dentro do movimento nos derradeiros momentos da abolição.

Prevendo e temendo que a Abolição pudesse futuramente ficar relacionada apenas aos nomes desses homens, em 29 de abril de 1888, o editorial do jornal abolicionista A redenção, ligado a Antônio Bento, afirmou: “Quando escreverem a história da escravidão no Brasil, não faltará algum escritor venal que venha colocar esses escravocratas entre os grandes cooperadores na redenção dos escravos.”.

A Abolição da Escravidão foi um grande passo na construção da nacionalidade. Não deve ser subestimada. Ela permitiu que o país desse um passo no sentido do nosso desenvolvimento econômico e social. Corretamente, afirmou o documento elaborado pelo PCdoB intitulado 500 anos de Luta: “A abolição resultou de um vasto movimento de massas, que incluiu os escravos rebelados, os setores médios das cidades, a intelectualidade avançada e os primeiros operários (…). Foi uma conquista que eliminou o escravismo, criando condições propícias à transição para o modo de produção capitalista no Brasil.” Segundo Gorender, “a abolição foi a única revolução social jamais ocorrida na História de nosso país”, pois “a extinção do escravismo colonial retirou o principal obstáculo à expansão das forças produtivas modernas e das relações de produção capitalistas.”.

No entanto, como a Abolição não foi acompanhada de uma reforma agrária e de leis protetoras do trabalhador emancipado, acabou mantendo a população negra numa situação de extrema miséria e longe de poder integrar-se à sociedade brasileira enquanto cidadãos plenos. Alguns abolicionistas, reformistas e radicais, compreenderam estes limites. Por isto, eles apresentaram a proposta de uma reforma agrária, como complemento necessário da reforma servil. Assim pensavam Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e André Rebouças. Mas estas reformas seriam tarefas que não poderiam ser realizadas por aquele Estado oligárquico e pelas classes dominantes brasileiras — quer na sua versão monárquica ou republicana.

Uma visão radical da história do Brasil, assentada na compreensão da centralidade da luta de classes, nos leva a encarar o “13 de maio” como uma data a ser comemorada. Não como um tributo aos fazendeiros paulistas ou à família imperial brasileira, que até então haviam sido esteios de uma ordem escravista conservadora, e sim como um tributo aos que lutaram para a construção de um país moderno e mais justo. Se este sonho ainda não pôde ser plenamente realizado, podemos dizer que a Abolição foi um dos passos necessários nesta longa caminhada que apenas começará a chegar ao seu final com a conquista do socialismo. Contudo, esta é uma tarefa para as gerações atuais e futuras e não para aquela à qual pertenceram os combatentes abolicionistas de 1888.

* Este artigo foi publicado no livro Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros, editado pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

** Augusto Buonicore (1960-2020). Historiador. Autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia

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Destaque: Rio de Janeiro, 1888. Multidão concentrada diante do Paço Imperial para a assinatura da Lei Áurea