O senhor tem feito um diagnóstico diferente acerca da atual crise econômica. Em que consiste?

Nos últimos três anos, desenvolvi um trabalho patrocinado pela Fundação Ford com o Instituto Multidisciplinar de Desenvolvimento e Estratégia (MINDS) no Rio de Janeiro, com o objetivo de identificar os indicadores da crise brasileira. Foi surpreendente porque se trata de um estudo inédito no Brasil e consiste em defender que a crise econômica brasileira atual é diferente das demais crises que já ocorreram no país e pode ser caracterizada como uma crise dentro dos balanços do setor privado, em particular das empresas não financeiras.

Com base nesse estudo, é possível perceber que desde 2007 essas empresas têm tido uma situação de déficit, ou seja, estão gastando mais do que recebem. Isso piorou em 2008, melhorou um pouco em 2009, quando elas praticamente zeraram a conta, mas a partir de 2010 essas empresas voltaram a ter déficit, e a situação foi piorando até 2013, quando elas alcançaram quase 4% do PIB de déficit.

À época, quando olhei para esses dados, já estava claro que se tratava de um ciclo de alavancagem no Brasil, que tinha um déficit insustentável para as empresas, porque elas não conseguem rodar esses déficits por muito tempo. Então, isso prejudicou muito o balanço das empresas, que tiveram um endividamento líquido. Num primeiro momento, elas tentaram reverter esse ciclo através do corte de gastos, e isso explica muito bem a crise econômica atual.

O que você denomina de empresas não financeiras? Trata-se da indústria em geral?

Essa é uma categoria do IBGE, que classifica, dentro do setor privado, as empresas financeiras, não financeiras e as famílias. Na categoria de não financeiras estão as indústrias e as empresas em geral.

O que aconteceu para que as empresas não financeiras tivessem uma crise de balanço de pagamentos? Alguns economistas têm avaliado que o governo ofereceu sucessivos estímulos ao investimento, financiamentos a baixo custo, isenções fiscais para tais empresas, mas mesmo assim chegou-se a esse cenário de crise econômica e de recessão. Nesse sentido, os incentivos foram insuficientes? O que deu errado?

Esse trabalho que desenvolvi segue a estrutura teórica do economista americano Hyman Minsky, que ficou muito conhecido na crise global de 2008, e trabalha com uma hipótese de pesquisa muito simples: durante períodos de prosperidade e de expansão se desenvolve uma fragilidade financeira, e isso tem a ver com a forma com que as empresas financiam investimentos; isto é, elas trabalham com uma combinação de lucro retido, endividamento e emissão de ações, mas durante o período de prosperidade, essas empresas mudam esse mix do financiamento por sentirem que estão mais otimistas e confiantes de que a economia está robusta e acabam tendo um ciclo de alavancagem. Então, trata-se de uma resposta natural, a prosperidade financeira é endógena e sistêmica e acontece como parte do processo de desenvolvimento. 

No período de pré-crise, entre 2002 e 2007, houve uma expansão muito grande dos lucros agregados e a partir desse momento as empresas se sentiram confiantes para aumentar seus endividamentos líquidos. Contudo, pós-crise, entre 2007 e 2008, houve uma mudança estrutural tanto para a economia doméstica quanto para a economia global, dada a crise financeira. Pelo lado da economia global, não se teve mais o mesmo padrão de comércio de fluxo financeiro que existia antes da crise financeira, e isso afetou os lucros agregados para as empresas não financeiras no Brasil, uma vez que os lucros são fundamentais para cumprir os compromissos financeiros que elas assumiram no momento pré-crise. 

No Brasil, no período pré-crise, os lucros agregados explodiram e tiveram um crescimento expressivo, mas pós-2008 os lucros estagnaram e, logo em seguida, sofreram uma queda significativa e isso gerou uma situação complicada, porque aumentou o endividamento das empresas, mas não houve uma geração de caixa para a economia como um todo. Assim, as empresas começaram a ter dificuldades, tanto que em 2011 já houve uma constante queda do retorno sobre os ativos e a partir desse momento houve também uma queda sobre o capital próprio – analisando a situação das 500 maiores empresas brasileiras, é possível perceber esses dados.

Ainda em 2011 houve também uma queda sobre os ativos e sobre o lucro. Tudo isso gerou um estresse muito grande porque as empresas, ao olharem suas decisões de investimento para o futuro, perceberam uma queda abrupta desse retorno. A partir daí, houve uma redução do investimento e, desde então, a taxa de crescimento vem caindo no país, até chegar a um patamar em que ficou negativa. Ou seja, esse não foi um processo que aconteceu em 2014; já em 2011 a taxa de crescimento do investimento caiu, sendo influenciada por essas mudanças estruturais e começou a ficar negativa a partir de 2014 e 2015.

Nesse momento, alguns aspectos foram negligenciados, porque durante o governo Dilma houve uma tentativa de recuperar o investimento, mas o governo fez uma análise pelo lado dos custos, e a decisão do investimento considera dois fatores: o retorno esperado sobre o capital, ou seja, o retorno monetário que se espera ganhar quando se compra um ativo produtivo, e o custo desse ativo. Se o retorno esperado pela empresa for maior do que o valor que ela tem de pagar, ela vai em frente e investe – essa é a decisão empresarial. Só que no Brasil houve um diagnóstico de que a mera redução dos custos do capital, dos custos de aquisição – e aí entra uma série de políticas de utilização de bancos públicos para diminuir a taxa de juros e políticas de incentivos de subsídios justamente para tentar diminuir os custos de aquisição do capital – seria suficiente.

Mas essa política acabou sendo insuficiente e esse foi um erro estratégico do governo, porque embora eles tenham reduzido esses custos, o retorno esperado do capital caiu muito mais rápido. Então, como disse antes, se a decisão empresarial, para o empresário investir, precisa de um retorno sobre o capital que é influenciado pelas suas expectativas do que se espera receber no futuro, mas se esse retorno cai mais rápido do que o custo de aquisição do capital, o empresário não investe. Então, essa é uma situação clássica. 

Inclusive, de uma forma análoga, o mesmo aconteceu nos EUA, porque embora no período pós-crise o banco central americano tenha tentado baixar as taxas de juros, mesmo com taxas de juros muito baixas o investimento não aconteceu, pois naquele momento o retorno esperado desses investimentos também era negativo. O Brasil passou por uma situação idêntica no sentido de que o custo do capital até caiu um pouco em função da atuação dos bancos públicos e da política de desoneração, mas isso foi insuficiente, dada a queda abrupta do retorno esperado sobre o capital.

A adoção dessas políticas não foi a forma mais adequada de lidar com esse problema, e a crítica que vem sendo feita é de que a crise atual aconteceu em função das intervenções do Estado na economia, as quais falharam e, portanto, isso causou um descontrole nas contas públicas com quebra de confiança. Isso é gravíssimo e é semelhante ao que aconteceu na crise americana quando o presidente Obama tentou passar o estímulo fiscal em 2009, na casa de 787 bilhões de dólares, no Congresso americano, e houve uma crítica de que esse valor seria muito pequeno, mal desenhado e ineficaz para lidar com o tamanho da crise americana. Uma vez que o Estado tentou dar um estímulo fiscal, que era inadequado, a crítica feita é a de que a política fiscal não funciona, o que não é o caso; ela só foi mal desenhada e o tamanho foi inapropriado, dada a dimensão da crise. O Brasil passou por um processo semelhante porque utilizou instrumentos que não foram eficazes.

Estou focando muito no diagnóstico da crise, porque se o diagnóstico que faço é correto, ou seja, se houve uma deterioração no balanço das empresas, não vai ser somente a redução de custos que vai reverter esse quadro, nem mesmo a austeridade fiscal. Os dados mostram que economias que passaram por esse ciclo de alavancagem tão intenso como o Brasil passou, têm uma situação dolorosa pela frente. Então, ao analisarem a crise atual, economistas e analistas de mercado não levam em consideração que essa crise é diferente das demais. 

A equipe econômica, quando tomou as decisões sobre as desonerações e outras medidas, tinha clareza acerca de qual era a natureza da crise? O que poderia ter sido feito de diferente?

Acredito que não, e tenho publicados artigos justamente para chamar a atenção para esse ponto. Durante uma conferência realizada em 2013 no Rio de Janeiro, na qual alguns membros do governo compareceram, à época eu já afirmava que a fragilidade financeira estava aumentando, mas o Brasil não está acostumado com crises de fragilidade financeira. As crises que o Brasil vivenciou até então foram, basicamente, crises externas, e as políticas desenhadas para isso eram exatamente as mesmas que estão sendo implementadas agora.

Esse é um erro fundamental. Por essa crise ser diferente e pelo fato de muitos formuladores de política econômica e economistas não prestarem atenção na natureza da crise, acabam prescrevendo políticas inadequadas que não tratam a natureza do problema. Essa já é a pior crise dos últimos 80 anos, justamente por ter essa falha de diagnóstico, de tal modo que se implementam políticas que não têm a ver com as causas da crise atual.

Você perguntou o que poderia ter sido feito. Sempre que há crises causadas por uma deterioração do balanço do setor privado, ou seja, sempre que se tem um endividamento líquido e uma crise de alavancagem, é necessário trabalhar nos seguintes passos: é fundamental recuperar o balanço, ou seja, para minimizar o endividamento é preciso de uma acumulação de ativos, e isso só pode ser feito se forem gerados os lucros agregados. Os lucros são uma combinação do investimento total, mais os déficits públicos, mais o saldo de transação corrente, menos a poupança dos trabalhadores, mais o consumo dos capitalistas; essa é uma identidade contábil. Quando se olha para isso, esses lucros são fundamentais porque são gerados para a economia como um todo e, num nível micro, as empresas capturam esses lucros através de políticas de preços, poder de mercado, e políticas de inovação. 

Como se consegue, então, recuperar o balanço pelo lado dos ativos? É preciso ter um saldo positivo no final do ano e para isso é fundamental que se volte a ter aumento dos lucros; aí se olha a equação de investimentos, que contempla dois fatores: o investimento público e o investimento privado. Nesse cenário, é pouco provável que o investimento privado seja recuperado, porque não há nenhum indicador hoje de que ele será recuperado e aumentado nos próximos anos. O investimento público, de outro lado, está parado, muitas empresas estão envolvidas em esquemas de corrupção e mesmo que se quisesse que essas empresas voltassem a investir seria difícil, visto que não há ainda nenhum acordo de resolução da crise para que elas possam sobreviver, apesar dos casos de corrução, como foi feito em outros países. Ou seja, tem de punir a administração dessas empresas, mas as empresas enquanto instituições continuam dentro do sistema.

Pelo lado do setor externo, também não haverá retorno porque ele está desacelerando: a China está desacelerando, os EUA estão passando por um processo de estagnação, a Europa está em crise, e a economia britânica está pensando em sair da Zona do Euro. Então, o crescimento não virá do lado do setor externo nem do lado da demanda e dos preços. Portanto, estamos numa situação em que só resta o déficit público. 

Em 2014 fiz algumas simulações para estimar como as empresas recuperariam seus balanços, imaginando que o déficit público teria de ser 9% do PIB. No final de 2015, o déficit público foi de 9,5% e, na minha avaliação, esse déficit acaba sendo uma resposta para esse tipo de crise. Quando se olha para as economias que passaram por esse tipo de situação, como a americana, percebe-se que o que a salvou não foi o estímulo fiscal do Obama, mas o que chamamos de estabilizadores automáticos. Ou seja, durante uma recessão se tem uma queda da atividade econômica e com isso uma queda de receitas, porque os lucros são menores. Nesse cenário, as receitas do governo caem e as despesas sobem, porque há gastos com seguro-desemprego, transferências para estados e municípios etc.

Mas os chamados estabilizadores automáticos garantem que o orçamento responda à deterioração da atividade econômica, ou seja, não depende do Congresso para que esses déficits do Estado aconteçam. Esse é um fator muito bom para conter a crise, porque ao aumentar o déficit público, se acaba contribuindo para a estabilização da renda do setor privado, e essa estabilização é fundamental não só para garantir a estabilidade econômica, mas para garantir a estabilidade do sistema financeiro. Isso ocorre porque a crise de endividamento, ao estabilizar os fluxos de renda, automaticamente contém o aumento da inadimplência dentro do sistema e, por consequência, contém uma deterioração dos ativos do sistema financeiro. Então é positivo que o déficit público cresça dessa forma durante uma crise de alavancagem. 

Só que no Brasil a discussão é sempre a mesma, de austeridade fiscal – costumo dizer que a febre da austeridade fiscal se espalhou pelo mundo inteiro. Embora os déficits sejam necessários, politicamente eles trazem um desafio muito grande e foi exatamente isso que aconteceu, porque tanto Levy, quanto Barbosa e agora o Ministro Meirelles defendem a mesma tese de que tem de se fazer ajuste fiscal: uns acreditam que ele tem de ser feito no curto prazo, como Levy, e outros, como Barbosa, que ele tem de ser feito no médio e longo prazo. Mas o fato é que a discussão é sempre a mesma e esse é um impasse na economia brasileira.

Se o diagnóstico é de que a crise foi causada pela matriz econômica com o aumento de déficit público, com descontrole das contas públicas, e isso causa a quebra de confiança e aumento da taxa de juros, seria natural, segundo esse argumento, tentar controlar as contas públicas, exatamente como estão tentando fazer agora – o que acho equivocado. Contudo, outro diagnóstico é o de entender a crise como uma crise de alavancagem financeira. Segundo a hipótese de fragilidade financeira, houve um ciclo de alavancagem muito grande para o Brasil, o qual gerou uma diminuição de gastos para justamente tentar recuperar o balanço e isso criou um viés recessivo muito intenso, então a solução da crise tem de ser outra. 

Fiz várias reuniões em São Paulo e várias empresas dizem a mesma coisa: nos últimos 15 meses tudo que fizeram foi cortar gastos e dizem que não têm mais onde cortar, e, mesmo cortando esses gastos, não se muda o cenário de crise de balanços, porque esse é um dos paradoxos da economia. Embora num nível micro para as empresas faça sentido cortar gastos, se num nível macro mais empresas começam a fazer o mesmo, a economia como um todo começa a cortar gastos e isso significa diminuição da produção, queda de emprego, de salário, a renda como um todo cai, e as receitas, em muitos casos, caem até mais fortemente do que o corte de gastos, e as empresas continuam no negativo.

É nesse cenário recessivo que o país se encontra. Por isso que o setor privado não consegue sair sozinho de uma crise dessas, porque todo o tipo de resposta que o setor privado adotar, fará com que a crise fique cada vez mais intensa. Aí entra a necessidade de o setor público tentar conter essa crise, mas esse não é o tipo de discussão que temos hoje no país.

De que modo aumentar o déficit público ajudaria a conter a crise de balanço de pagamento das empresas? 

Para o setor não governamental ter um superávit em suas contas, o setor público precisa ter um déficit necessariamente. Então, considerando o setor não governamental dividido entre o setor privado doméstico e o setor externo, se tem o seguinte cenário: o saldo do setor privado é igual ao déficit público mais o saldo de transações correntes; essa é a equação fundamental e isso não é uma teoria, é uma identidade contábil. Em um cenário em que o saldo de transações correntes é igual a zero, então o saldo do setor privado doméstico é igual ao déficit público, ou seja, se o déficit público aumenta, aumenta também o saldo do setor privado doméstico, dado o equilíbrio das transações correntes.

Então, numa condição em que o setor privado doméstico roda com déficit em seus saldos, esse déficit só consegue ser revertido de duas formas: ou se tem um superávit no saldo de transações correntes ou se tem aumento do déficit público. A economia brasileira, historicamente, tem um déficit das transações correntes; o período em que o Brasil teve um saldo positivo em transações correntes foi no período pré-crise, que foi um período de bolha, o qual durou pouco tempo. Então é normal, devido à fatores estruturais da economia brasileira, que o país tenha um déficit em transações correntes.

Mas isso é complicado porque se o setor externo não vai contribuir para aumentar esse saldo, e só resta uma coisa a fazer, que é apelar para o déficit público, no caso do Brasil a expectativa é de que, em função da queda das atividades econômicas, se tenha uma diminuição do déficit das transações correntes. O valor registrado em Abril de 2016 foi equivalente a 1,97% do PIB. Mas numa previsão de -1% de déficit, o setor privado doméstico tem um saldo positivo somente se o déficit do governo for maior do que 1%, porque se o déficit do governo for igual a 3%, 3 mais -1 tem um saldo positivo de 2 para o setor privado doméstico. Essa é a conta a ser feita e é por isso que o déficit público acaba beneficiando o setor privado. Mas se há um cenário em que o déficit de transações correntes é de 2% do PIB, para permitir que o setor privado doméstico tenha um superávit de 5%, o que é uma previsão razoável em momentos de crise, o déficit público tem de ser igual a 7%, porque 7 menos 2 é igual a 5.

Então, é dessa forma que o déficit público ajuda o setor privado, porque o saldo positivo do setor privado doméstico indica que o setor privado está acumulando ativos. Aí a pergunta é: Como se tem uma acumulação de ativos? Através de saldos positivos nas contas; essa é a questão fundamental.

Então o Estado tem que ter um déficit permanente ou é possível equilibrar as contas públicas em algum momento?

Essa é um excelente pergunta. Vamos analisar o cenário da economia brasileira: devido a fatores estruturais da nossa organização industrial e de padrões de financiamento interno e externo, há essa tendência de déficit em transações correntes. Ora, se há um déficit em transações correntes na casa de mais ou menos 2%, se o governo tentar ter uma conta equilibrada, como foi proposto antes da crise – vários economistas fizeram a proposta de déficit nominal zero -, o saldo do setor privado, necessariamente, será igual a -2%, e isso é insustentável, posto que déficits dentro do setor privado são insustentáveis, porque tem essa acumulação líquida de endividamento.

Aí a pergunta a fazer é a seguinte: O setor público tem que rodar esses déficits durante muito tempo? Se há uma posição de déficit em transações correntes, sim, para permitir o funcionamento do setor privado. O setor privado precisa acumular ativos líquidos com o tempo – isso é fundamental em uma economia capitalista – e precisa ter déficits públicos para que isso aconteça; não há outra forma.

Fiz esse cálculo inclusive sobre a crise do Euro, e a conclusão foi exatamente a mesma: o setor privado teve déficits durante muito tempo, e dado o déficit em transações correntes, resultou em uma crise de alavancagem, isso fez com que governos tivessem que gerar esses déficits. Só que a discussão do Euro é um pouco diferente porque os países não têm soberania monetária, ou seja, as economias, como a espanhola e a portuguesa, são como os estados de Nova York ou Califórnia, não emitem a própria moeda. Então, a capacidade deles de suportarem esses déficits públicos acaba sendo diminuída e esse foi um dos fatores que gerou a crise do Euro; ou seja, ela aconteceu exatamente em função da perda da soberania monetária. Isso porque tem uma queda de receita e um aumento de despesa – o mesmo mecanismo que mencionei dos estabilizadores automáticos -, só que a capacidade dessas economias de gerar déficits públicos é limitada porque elas não são emissoras das suas próprias moedas, coisa que a Inglaterra decidiu não fazer, porque, mesmo fazendo parte da União Europeia, continuou emitindo a sua própria moeda.

É importante cada nação utilizar sua própria moeda, porque isso aumenta a capacidade de ter déficits públicos para suportar a economia e o processo de desenvolvimento. Por exemplo, o Japão tem uma dívida de mais de 200% do PIB e teve downgrade na virada do milênio, e já naquele momento se anunciava uma crise fiscal para a economia japonesa, que nunca aconteceu, porque o país é soberano monetariamente e opera com câmbio flutuante. O Brasil, desde 1999, opera dessa forma, isto é, o Estado brasileiro é o emissor de sua própria moeda e opera com uma taxa de câmbio flutuante. Assim se aumenta a capacidade de rodar esses déficits fiscais, então, a solvência não é um fator de preocupação.

Muitas das discussões que tenho com economistas no Brasil são exatamente sobre isso: somos capazes de rodar esses déficits? Sim, somos, porque todas as obrigações são feitas como obrigações do Estado, pois você só consegue pagar seus impostos se o Estado emitir as obrigações dele primeiro, pois o Estado precisa gastar primeiro ou o Banco Central precisa fornecer uma linha de empréstimo para que o setor não governamental consiga pagar suas obrigações.

Então mesmo com o déficit público, o Estado tem condições de financiar as políticas sociais, por exemplo?

A discussão primeira é sobre a solvência fiscal, e não há esse problema de solvência porque o Brasil opera com moeda soberana. Então, a questão é: o Estado pode rodar déficits dessa magnitude sem que pressione a inflação? Ou seja, a pergunta sempre tem que ser qual o impacto dos déficits públicos na economia, porque isso não quer dizer que o Estado pode gastar sem problema nenhum – não é isso que estou falando. Mas se é possível concluir dessa discussão que não há risco de solvência, então é possível passar para a próxima pergunta: Qual é o impacto desse déficit público na economia? Isto é, existem recursos disponíveis não utilizados e é possível mobilizá-los através de gastos públicos para ter uma retomada da atividade econômica? A próxima pergunta é: Esses gastos governamentais terão impacto nos preços da economia e quais tipos de preços serão afetados? Logo, tem uma análise muito mais sofisticada do que o debate atual, e posteriormente voltamos à sua pergunta inicial. 

Existem déficits muito grandes no Brasil, mas a composição desses déficits é muito ruim, porque basicamente são compostos pelo pagamento de juros. Embora esse déficit seja expressivo, ele acaba não ajudando muito a recompor os balanços daquelas empresas que mais precisam, que são as empresas não financeiras, que tiveram esse ciclo de alavancagem.

Portanto, a qualidade do déficit público não é ideal, ou seja, a qualidade desse gasto não está indo para os setores que mais precisam, e aí é fundamental mobilizar diferentes setores da sociedade para que isso aconteça. Enfim, essas empresas com capacidade ociosa poderiam avançar em investimento, em infraestrutura, construção civil, saneamento, mobilidade urbana, o que é fundamental hoje para o país.

Você já fez um cálculo de como as contas públicas poderiam ser readequadas para que o déficit público tivesse esse impacto positivo na economia?

O Brasil enfrenta hoje problemas de forte desemprego e queda da atividade econômica. Por um lado, havia toda uma preocupação convencional de que a inflação era basicamente alimentada pela demanda. Essa premissa hoje não é mais válida. Se olharmos todos os indicadores de demanda, veremos uma queda muito forte nos últimos oito meses e a inflação praticamente não se mexe. Então, apesar de grande parte dos analistas e economistas brasileiros afirmar que o superávit primário era fundamental para conter a inflação, essa teoria foi por “água abaixo”, porque a demanda desabou.

Inclusive o Banco Central tem uma posição de esquizofrenia, porque não consegue defender o próprio modelo. Grande parte do mecanismo de transmissão da política do Banco Central é através de canais de demanda, o que coloca o Banco Central em uma posição muito complicada, porque para tentar convencer o público de que ainda são os “guardiões da estabilidade monetária”, tentando conter a inflação, o BC mantém os juros elevadíssimos, e justamente isso é ineficaz.

É fundamental o Banco Central reconhecer esse erro no modelo que, inclusive, não só falhou em prever uma das maiores crises da história do capitalismo, que foi a crise global de 2007/2008, mas também falhou na avaliação das políticas que foram adotadas no período pós-crise. Esse modelo não só não funciona em períodos de prosperidade, como falha significativamente em períodos de crise. O Banco Central está atuando hoje no Brasil como se essa fosse uma crise como qualquer outra, o que não é. Então o Banco Central tem que reconhecer que essa crise é diferente.

Você perguntou sobre os impactos: tem uma política que foi adotada em outras economias, em que o Estado se torna o empregador de última instância, justamente para conter o desemprego. Assim o Estado acaba sendo o financiador desses empregos por meio de parcerias com o setor privado, com ONGs e projetos comunitários financiados pelo governo federal. Além disso, é preciso ter uma ajuda para os estados e municípios, ou seja, é preciso fazer transferência de renda e é por isso que temos uma União. É fundamental entender que grande parte dessa crise dos estados pode ser explicada com essa recessão que vem acontecendo no Brasil. Ou seja, a recessão acontece, as receitas caem, as despesas aumentam e os estados ficam em uma posição em que não conseguem sustentar esses déficits, e é fundamental que o governo federal dê essa ajuda a eles. 

Há uma discussão sobre o refinanciamento da dívida dos estados, mas nesse momento de emergência é fundamental que o Estado contribua com transferências para os estados e municípios para serviços fundamentais, especialmente nas áreas de saúde, educação e segurança, pois tem que manter esses setores.

Recentemente um relatório da McKinsey sobre os investimentos em diferentes economias mostra que o Brasil é um país de extremos. O relatório apresenta o valor do estoque em infraestrutura, que segundo a média mundial é de 71% do PIB. O estoque de ativos de infraestrutura do Japão, que está no extremo, é de 179%, o da China é 76%, o dos Estados Unidos, 64%, Índia, 58%, Reino Unido, 57%, e o do Brasil é 16%. Ou seja, é um estoque muito abaixo da média mundial. Portanto, há muito espaço para o Brasil avançar nessa área, não só através de investimentos públicos ou privados, mas é preciso ter a combinação dos dois e, dada a crise atual, não é possível esperar que o setor privado vá liderar esse processo. Então, por todos os motivos que falei, é fundamental que o setor público vá em frente e tenha um investimento muito forte. Nesse sentido o PAC é um avanço institucional muito grande e poderia ter sido um pouco mais agressivo, dada a necessidade do Brasil em avançar em infraestrutura.

Como os outros economistas veem sua proposta de retomar o investimento mesmo com a existência de déficit público?

Muitos deles ficaram surpresos, no sentido de que não olhavam a crise dessa forma, mas como fiz um levantamento empírico da economia brasileira, agora entendem e acabaram admitindo que foram otimistas demais. Assim, muitos acabaram revisando suas premissas e entendem que é fundamental o setor público retomar seu protagonismo de modo a retomar o investindo para estimular o setor privado, o que gera lucros agregados para a economia como um todo, permitindo essa recuperação dos fluxos de caixa. Com isso se tem o aumento do retorno esperado e se cria um ambiente positivo de expectativa, e o crescimento volta. Por isso que, geralmente, em crises dessa natureza o setor público é fundamental para assegurar e estabilizar a renda da produção como um todo para que o setor privado possa voltar a investir.

Infelizmente, hoje o que está sendo discutido é o contrário, ao se tentar controlar as contas públicas através de ajuste fiscal. Isso gera venda de ativos do Estado, privatização, corte de gastos sociais etc. 

Entrevista conduzida pela jornalista Patricia Fachin.

IHU On-Line [http://www.ihu.unisinos.br/]: 21/06/2016.