O professor emérito da Unicamp, filósofo e educador, Dermeval Saviani, de 73 anos, afirmou que a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que congelou os gastos em saúde e educação não inviabilizou somente a educação brasileira, mas o país como um todo.

Para Saviani, um dos pontos chaves que provocou o golpe foram os interesses econômicos do sistema financeiro. Ele ressaltou, em entrevista ao jornal Brasil de Fato, que o foco na dívida e nas contas públicas, pós-golpe, foi para fazer caixa, para fazer o superávit primário, para o pagamento dos bancos.

“Isto levou àquela emenda constitucional, a chamada PEC do Fim do Mundo, que congelou por 20 anos os gastos públicos, limitada apenas à inflação do ano anterior. Então, isto inviabiliza o Plano Nacional de Educação (PNE) porque as metas do plano estão vinculadas aos recursos financeiros. Uma das metas principais, a meta 20, que determinava atingir 7% do PIB [para o investimento na educação] nos primeiros cinco anos, chegando a 10% ao final do período de dez anos. Como o plano foi aprovado em 2014, então a meta de 10% do PIB, deveria ser atingida até 2024″, disse.

Para Saviani, que é considerado o criador da chamada Pedagogia Histórico-Crítica e já recebeu o prêmio Jabuti, a aprovação da emenda constitucional por 20 anos, impedindo investimentos públicos, e iniciando-se a partir de 2017, conduz a limitação do Plano Nacional de Educação até 2037. “Como o plano vence em 2024, as metas ficaram inviabilizadas; algumas delas que deveriam ser atingidas no prazo de 2 anos, portanto em 2016, já venceram e não foram atingidas, e aquelas cujo vencimento se estende até 2024, também estão inviabilizadas por conta dessa PEC”, afirmou.

Segundo o professor, a reforma do ensino médio proposto pelo governo Temer (com o apoio dos partidos evangélicos e do PSDB), implica um retrocesso para a década de 1940, quando estava delimitada a formação profissional de um lado e a formação das elites de outro.

“Em 1942, o decreto que é conhecido como Lei Orgânica do Ensino Secundário, determinava que o ensino secundário se destinava às elites condutoras, e nesse mesmo ano de 1942, foi baixado um outro decreto, conhecido como Lei Orgânica do Ensino Industrial, regulando o ensino industrial, com o mesmo período de duração do ensino médio, quatro anos de primeiro ciclo, chamado ginásio, e três anos do segundo ciclo, o colegial, para formar os chamados técnicos de nível médio. Se o ensino secundário era destinado às elites condutoras, infere-se que o ensino profissional era destinado ao povo conduzido. Em 1942 foi a Lei Orgânica do Ensino Industrial, e em 1943 a do Ensino Comercial, depois em 1946 saiu a do Ensino Agrícola”, contextualizou.

Para ele, a reforma atual comete um absurdo ao atribuir ao adolescentes de 15 anos, a responsabilidade de definir o seu percurso, os seus projetos de vida.

“Como é que um adolescente de 15 anos vai ter um projeto de vida para poder escolher já entre os cinco itinerários, àquele que corresponde ao que ele pretende desenvolver na sociedade? Nós sabemos que os jovens de 18, 20 anos que ingressam no ensino superior não têm clareza ainda da opção (…) Por detrás disto está o entendimento de que a grande maioria vai para aquelas profissões de caráter não-intelectual, que implica maior precariedade e salários mais baixos. Então, a diferença entre as elites condutoras e a população trabalhadora de modo geral, proclamada lá na reforma de 1942, tende a se acentuar com uma proposta como essa”, afirmou.

Coincidentemente, a reforma trabalhista também retrocede para 1942, quando foi criada a Consolidação das Leis Trabalhistas e há também tentativas de criminalizar a mulher em casos de aborto que remontam ao código civil anterior à década de 40.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Em sua fala recente, você citou diversos retrocessos do governo golpista de Michel Temer. Um deles é a inviabilização do Plano Nacional de Educação de 2014. Por que ele ficou inviabilizado e quais as consequências?

Dermeval Saviani: Um dos pontos chaves que provocou o golpe foram os interesses econômicos do sistema financeiro, daí o foco na dívida e nas contas públicas, para fazer caixa, para fazer o superávit primário, para o pagamento dos bancos. Isto levou àquela emenda constitucional, a chamada PEC do Fim do Mundo, que congelou por 20 anos os gastos públicos, limitada apenas à inflação do ano anterior. 

Então, isto inviabiliza o Plano Nacional de Educação (PNE) porque as metas do plano estão vinculadas aos recursos financeiros. Uma das metas principais, a meta 20, que determinava atingir 7% do PIB [para o investimento na educação] nos primeiros cinco anos, chegando a 10% ao final do período de dez anos. Como o plano foi aprovado em 2014, então a meta de 10% do PIB, deveria ser atingida até 2024.

Com a aprovação da emenda constitucional por 20 anos, impedindo investimentos públicos, e iniciando-se a partir de 2017, isto conduz essa limitação até 2037. Como o plano vence em 2024, as metas ficaram inviabilizadas; algumas delas que deveriam ser atingidas no prazo de 2 anos, portanto em 2016, já venceram e não foram atingidas, e aquelas cujo vencimento se estende até 2024, também estão inviabilizadas por conta dessa PEC.

O senhor critica o fato da reforma do Ensino Médio ter sido feita sem diálogo com os atores principais da educação. Quais os problemas que apresenta esta reforma?

Essa é uma reforma que, na verdade, implica um retrocesso para a década de 1940, quando estava delimitada a formação profissional de um lado e a formação das elites de outro. Então, em 1942, o decreto que é conhecido como Lei Orgânica do Ensino Secundário, determinava que o ensino secundário se destinava às elites condutoras, e nesse mesmo ano de 1942, foi baixado um outro decreto, conhecido como Lei Orgânica do Ensino Industrial, regulando o ensino industrial, com o mesmo período de duração do ensino médio, quatro anos de primeiro ciclo, chamado ginásio, e três anos do segundo ciclo, o colegial, para formar os chamados técnicos de nível médio. Se o ensino secundário era destinado às elites condutoras, infere-se que o ensino profissional era destinado ao povo conduzido. Em 1942 foi a Lei Orgânica do Ensino Industrial, e em 1943 a do Ensino Comercial, depois em 1946 saiu a do Ensino Agrícola.

No caso dessa reforma atual, eles preveem cinco itinerários: os quatro primeiros correspondem àquelas áreas do antigo ensino secundário, e o último é o ensino profissional. Argumenta-se que esses itinerários são para flexibilizar o curso e permitir a escolha dos alunos. Mas isso é um outro absurdo porque estariam atribuindo a adolescentes de 15 anos, a responsabilidade de definirem o seu percurso, os seus projetos de vida.

Como é que um adolescente de 15 anos vai ter um projeto de vida para poder escolher já entre os cinco itinerários, àquele que corresponde ao que ele pretende desenvolver na sociedade? Nós sabemos que os jovens de 18, 20 anos que ingressam no ensino superior não têm clareza ainda da opção.

Então, na verdade, isto por um lado é uma justificativa falsa porque a tendência é que a maioria vá para esse itinerário profissional; inclusive, segundo a justificativa que normalmente se apresenta com esse itinerário ele teria imediatamente a chance de ter um emprego, enquanto que nos outros itinerários ele dependeria de ir para o ensino superior. De outro lado, não há garantia de que as escolas ofereçam os cinco itinerários. Então, a tendência vai ser oferecer dominantemente o quinto itinerário de formação profissional, e algum dos outros de forma mais restrita.

Por detrás disto está o entendimento de que a grande maioria vai para aquelas profissões de caráter não-intelectual, que implica maior precariedade e salários mais baixos. Então, a diferença entre as elites condutoras e a população trabalhadora de modo geral, proclamada lá na reforma de 1942, tende a se acentuar com uma proposta como essa. 

Você têm afirmado que a proposta da “Escola Sem Partido” é, na verdade, uma proposta de Escola de Partidos, ao ser uma iniciativa de partidos da direita. Quais são os riscos de propostas como esta?

Quando esse movimento de Escola Sem Partido procurou traduzir em projetos de lei, tanto no Congresso Nacional, como nas Assembleias e nas Câmaras Municipais, [percebeu-se que] trata-se de uma proposta visando a cercear a formação crítica dos alunos por parte dos professores. Uma proposta que visa a cercear a liberdade de pensamento, que é prevista como um direito na Constituição. Uma proposta que procura se sintonizar com a visão fundamentalista das seitas religiosas, pretendendo que os professores nas escolas, se limitem a uma formação isenta de criticidade e de capacidade analítica dos alunos. Então, se trata de uma proposta que visa, em última instância, a conformar a população à ordem estabelecida, e nesse sentido, é uma proposta conservadora e mais do que isso, reacionária. 

Por último, o senhor vem falando da necessidade de “resistências ativas” no âmbito educativo. O que já está sendo feito nesse sentido e quais elementos devem ser levados em conta no futuro próximo para fortalecer estas resistências?

O que eu venho propondo é a retomada dos Fóruns em Defesa da Educação Pública, tanto no âmbito local, como no regional, no nível dos estados, e no nível nacional. Esses fóruns são uma experiência que já aconteceu, como o Fórum em Defesa da Escola Pública na Constituinte, que as propostas dos educadores para figurar no capítulo da educação na Constituição foram apresentadas, e, de fato, conseguiu-se que praticamente a totalidade fosse incorporada à Constituição.

Depois, esse fórum se manteve na discussão da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional], e isto possibilitou alguns avanços na tramitação na Câmara dos Deputados. Entre 1989, quando começou a tramitação, o projeto foi encaminhado como uma novidade porque, tradicionalmente, os projetos de lei de educação são de iniciativa do Executivo, mas nesse caso, em dezembro de 1988, deu entrada na Câmara Federal, o projeto de LDB oriundo do movimento dos educadores.

E aí tramitou de 1989 até 1994, quando foi aprovado na Câmara dos Deputados, com idas e vindas, havia o Centrão lá fazendo resistência, impedindo, por exemplo, que o título de Sistemas Nacionais de Educação fosse introduzido, então mudou-se para Organização da Educação Nacional, mas com alguns avanços importantes. Só que aí, passando para o Senado, veio a nova legislatura com o governo FHC [Fernando Henrique Cardoso], que assumiu em março de 1995, e todo esse trabalho foi posto de lado e apresentado um substitutivo, de iniciativa do senador Darcy Ribeiro, articulado com o MEC [Ministério da Educação e Cultura], sendo aprovado e resultando na atual LDB que, do ponto de vista dos educadores, apresenta vários limites. E aí a mobilização continuou com os Congressos Nacionais de Educação que elaboraram uma proposta de Plano Nacional de Educação, que também se antecipou do governo.

Então, esse é um movimento de resistência que avança em alguns momentos, em outros momentos acaba não conseguindo muitos avanços, mas que é necessário para evitar os retrocessos e retomar os avanços que os educadores vêm defendendo já há várias décadas como necessários para o desenvolvimento da educação pública e o atendimento das necessidades educacionais da população.

É importante não só retomar, mas ampliar, não ser fóruns organizados apenas para as entidades do campo educacional, mas incorporando também as entidades do campo sindical, dos sindicatos dos trabalhadores e dos movimentos sociais populares, para reforçar essa mobilização e, nesse sentido, fazer reverter as medidas retrógradas que o atual governo vem tomando.