Nascemos num campo de futebol.
Haverá berço melhor para dar à luz uma estrela?
Aprendemos que os donos do país só nos ouviam
quando cessava o rumor da última máquina…
quando cantava o arame cortado da última cerca.
Carregamos no peito, cada um, batalhas incontáveis.
Somos a perigosa memória das lutas.
Projetamos a perigosa imagem do sonho.

Nada causa mais horror à ordem
do que homens e mulheres que sonham.
Nós sonhamos. E organizamos o sonho.
Nascemos negros, nordestinos, nisseis, índios,
mulheres, mulatas, meninas de todas as cores,
filhos, netos de italianos, alemães, árabes, judeus,
portugueses, espanhóis, poloneses, tantos…

Nascemos assim, desiguais, como todos os sonhos humanos.
Fomos batizados na pia, na água dos rios, nos terreiros.
Fomos, ao nascer, condenados a amar a diferença.
A amar os diferentes.

Viemos da margem.
Somos a anti-sinfonia
que estorna da estreita pauta da melodia.
Não cabemos dentro da moldura…
Somos dilacerados como todos os filhos da paixão.
Briguentos. Desaforados. Unidos. Livres:
como meninos de rua.

Quando o inimigo não fustiga
inventamos nossas próprias guerras.
Desenvolvemos um talento prodigioso para elas.
Com nossas mãos, sonhos, desavenças compomos um rosto de peão,
uma voz rouca de peão,
o desassombro dos peões para oferecer ao país,
para disputar o país.

Por sua boca dissemos na fábrica, nas praças, nos estádios
que este país não tem mais donos.
Em 84 viramos multidão, inundamos as ruas,
somamos nosso grito ao grito de todos,
depois gritamos sozinhos
e choramos a derrota sob nossas bandeiras.
88. Como aprender a governar,
a desenhar em cada passo, em cada gesto,
a cada dia a vida nova que nossa boca anunciou?

89. Encarnamos a tempestade.
Assombrados pela vertigem dos ventos que desatamos.
Venceu a solidez da mentira, do preconceito.
Três anos depois, pintamos a cara como tantos
e fomos pra rua com nossos filhos
inventar o arco-íris e a indignação.

Desta vez a fortaleza ruiu diante dos nossos olhos.
E só havia ratos depois dos muros.
A fortaleza agora está vazia
ou povoada de fantasmas.

O caminho que conduz a ela passa por muitos lugares.
Caravanas: pelas estradas empoeiradas,
pela esperança empoeirada do povo,
pelos mandacarus e juazeiros,
pelos seringais, pelas águas da Amazônia,
pelos parreirais e pelos pampas, pelos cerrados e pelos babaçuais,
mas sobretudo pela invencível alegria
que o rosto castigado da gente demonstra à sua passagem.
A revolução que acalentamos na juventude faltou.

A vida não. A vida não falta.
E não há nada mais revolucionário que a vida.
Fixa suas próprias regras.
Marca a hora e se põe de nós, incontornável.
Os filhos da margem têm os olhos postos sobre nós.
Eles sabem, nós sabemos que a vida não nos concederá outra oportunidade.
Hoje, temos uma cara. Uma voz. Bandeiras.
Temos sonhos organizados.

Queremos um país onde não se matem crianças
que escaparam do frio, da fome, da cola de sapateiro.
Onde os filhos da margem tenham direito à terra,
ao trabalho, ao pão, ao canto, à dança,
às histórias que povoam nossa imaginação,
às raízes da nossa alegria.

Aprendemos que a construção do Brasil
não será obra apenas de nossas mãos.
Nosso retrato futuro resultará
da desencontrada multiplicação
dos sonhos que desatamos.

Pedro Tierra
1994

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Pedro Tierra foi preso pela ditadura em 1972, acusado de “subversão” por sua ação junto à ALN (Ação Libertadora Nacional). Foi libertado em 1977, após passar por diversas prisões e por longos períodos de tortura. Por meio da poesia, Tierra conseguiu manter sua humanidade nos porões da ditadura. “Era, então, a maneira de poder me olhar no espelho sem enlouquecer”, diz ele. 

Seus poemas descrevem sua resistência, sua luta pela vida nos calabouços, superando a tortura física e a tristeza de acompanhar o assassinato de diversos companheiros (grande parte dos poemas são dedicados a companheiros e companheiras de cela e prisão assassinados.)

Para escrever na cadeia, teve que roubar lápis dos torturadores e escrever com letra miúda no papel dos maços de cigarro. De início, mandava seus poemas na cartas, mas estes eram interceptados pela censura. Passou então a utilizar um subterfúgio: escrevia dizendo que adorava muito as poesias de um poeta latino-americano chamado Pedro Tierra do qual transcrevia poemas selecionados (que eram seus próprio). Seu verdadeiro nome é Hamilton Pereira, mas, desde então, Pedro Tierra passou a ser seu pseudônimo. 

A maior parte de suas poesias saíam escondidas dentro de canetas. Uma primeira edição mimeografada, com prefácio do padre e poeta Dom Pedro Casaldáliga, rodou clandestinamente o Brasil com Hamilton ainda preso e foi se tornando símbolo da luta pela anistia. “Poemas do povo da noite” recebeu, em 1978, menção honrosa no prêmio Casa das Américas, de Cuba, e seguiu ganhando fama internacional, sendo traduzido para diversas línguas. Hamilton Pereira, ou Pedro Tierra, continua escrevendo e é militante do PT.