No dia 31 de maio, ocorreu em São Paulo o 3o. Colóquio “O Socialismo de Mercado: uma Nova Formação Econômico-Social, Um Modo de Produção Complexo”, apresentou os avanços do estudo do pesquisador Elias  M. K. Jabbour, da Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

O debate foi conduzido pelo presidente da Fundação Maurício Grabois, Renato Rabelo, com comentários do economista Nilson Araújo, e do ex-presidente da Agência Nacional de Petróleo, Haroldo Lima. O colóquio é o terceiro de uma iniciativa que começou debatendo o pacote do ministro da Justiça, Sérgio Moro, que utiliza o direito e o processo penal para o combate à criminalidade, como parte do mecanismo de dominação do sistema atual. O segundo colóquio discutiu  o papel dos militares no Governo de Bolsonaro.

Fronteira do conhecimento novo

 

Renato Rabelo destaca importância de colóquios para a Fundação Maurício Grabois (Foto: Cezar Xavier)

Segundo Renato, o debate sobre o regime econômico vigente na China é um tema palpitante, que, em sua visão, se configura um tema de fronteira. Segundo ele, trata-se aqui de estudar e pesquisar as grandes transformações que possam levar a uma nova sociedade. “Isso nos interessa, sobremodo aos comunistas. O nosso grande ideal é suplantar o capitalismo”, afirmou.

A extraordinária experiência chinesa é de uma transformação da sociedade, porque, em 40 anos, se tornou uma grande potência mundial. Renato lembra que, antes de 1968, quando iniciou todo o processo conduzido por Deng Xiao Ping, A China era uma economia de porte bem inferior à economia brasileira, inclusive na renda per capita. “Hoje, 40 anos após, a China está disputando a hegemonia mundial, nessa transição de mundo. E o Brasil? Em franco retrocesso. Estávamos caminhando para a 5a economia do mundo e nos encaminhamos para a 8a ou 9a”, lamentou.

Renato ainda anunciou que, no próximo mês, os colóquios vão discutir o capitalismo contemporâneo, dividido em três subtemas: as razões da crise de 2008; o modo como o capitalismo internacional e nacional tem reagido à crise; e a superestrutura que garante a dominação e sobrevivência do capitalismo em meio a turbulências da atual crise. “Por que surge essa corrente ultra-autoritária, agora? Surgiu por acaso? É para dar continuidade a isso. Porque eles acham que as instituições liberais já não dão mais conta”, completou.

Renato considerou o debate fecundo, apesar da complexidade do tema. Ele citou a análise de Marx sobre o capitalismo, rumo ao comunismo, essa etapa econômica superior da sociedade. “O socialismo, na compreensão de Marx, é um longo período de transição histórica do capitalismo ao comunismo”, completou. No entanto, Marx imaginava esse processo de transição ocorrendo naturalmente em países capitalistas avançados. No entanto, toda a experiência da revolução do século passado foi exatamente nos países capitalistas atrasados. O modo de produção predominante em países como Rússia e China era capitalista, mas a formação econômica e social era pré-capitalista. “Em alguns casos, como a China, ainda tem, até hoje, uma era pré-capitalista meio feudal”.

Deste modo, o avanço rápido da União Soviética mostrou que a experiência socialista pode retroceder, por dois fatores interrelacionados, na opinião de Renato: o fator político e o poder econômico. “Do ponto de vista econômico eles perderam a corrida contra o capitalismo, o que influiu sobre o poder político também. Eu não vejo as coisas separadas. Chegaram a um nível de alcançar tecnologicamente a Europa, não conseguiram alcançar os EUA, perdendo espaço na inovação econômica, sobretudo a partir da década de 1960.”

No caso da China, o dirigente do PCdoB vê um processo inverso. “Eles tentaram o socialismo de imediato, com comunas no campo, num país atrasado do ponto de vista capitalista, e viram que não deu certo. Só deram com os burros nágua. Não tinha nenhuma estrutura básica de força produtiva pra assentar o socialismo. Foram trinta anos de ziguezague, segundo eles”, analisou. Depois de trinta anos, em 1978, acrescenta Renato, buscam uma saída que está dando nesse enorme desenvolvimento agora.

A questão do mercado, acho que ainda será persistente por um período grande, pelo que era a China. Construir socialismo cercado de capitalismo por todos os lados, tem que ter comércio com o mundo, portanto, sofrendo as influências e as crises do capitalismo mundial.

Lênin apontava que a grande questão da URSS era o isolamento no campo mundial. A China viu isso e percebeu que sem esse intercâmbio e comércio, não se chegaria a bom termo. O Vietnã ainda é um país pequeno, que acompanha Cuba nestas inflexões. “Eu estive lá [em Cuba] seis anos atrás, quando estavam discutindo as diretrizes, um grande processo para se adaptar à nova realidade.

Como fazer para desenvolver as forças produtivas e ter condições de ter essa sociedade superior? Nós não podemos pensar em dividir miséria no socialismo, como Cuba pensou que poderia ser. Cesta igual para todo mundo. Isso não é socialismo de Marx. Socialismo de Marx é cada um segundo o seu trabalho, que ainda vai conservar desigualdade material. No comunismo, não, é cada um segundo a sua necessidade, porque as forças produtivas vão permitir isso”, explicou Renato.

“Eu só vejo condições de eliminar o mercado quando nós começarmos formar um campo socialista, que não esteja cercado e dependente apenas do mercado capitalista”. Ele se pergunta qual a tendência: seguir diante ao socialismo ou retroceder ao capitalismo? “O que eu vejo é planejamento. Com a tecnologia atual, o planejamento é moderníssimo e avançado”. Ele explica afirmando que a China tem, hoje, um controle extraordinário de sua economia, por meio de grandes conglomerados estatais, que dão a direção da economia, enquanto a parte capitalista privada está submetida e complementar a isso.

Depois, a condução do mercado mundial na China é monopólio do estado, com todo o sistema financeiro controlado pelo estado, por meio de bancos de investimento de todo tipo. Desta forma, o estado mantém controle sobre o que é fundamental, com o setor privado controlando empresas sem papel estratégico nacional.

“Eu não vi na China, até agora, uma mudança ideológica de poder”, diz Renato, lembrando dos efeitos perversos da inflexão soviética para o capitalismo. Mas ele lembra do impacto profundo da visita do premiê russo Gorbatchev, em que o presidente chinês era Zao Ziang. Ali, o russo mostrou sua experiência de Perestroika, que era a volta ao capitalismo. E aquilo teve influência sobre os estudantes chineses, porque o mundo estava vivendo esse retrocesso. “Saiu o Gorbatchev, houve a revolta da Praça Tianmen, Zao Ziang foi tirado de cena e voltou Deng Xiao Ping pra segurar o poder político e conteve a revolta. Muita gente não entendeu, inclusive nós. Tivesse deixado por conta daquela revolta era a volta do capitalismo”, pensou em retrospectiva.

Renato destacou o forte interesse das lideranças chinesas em Karl Marx, ao estabelecer contato permanente com os manuscritos alemães e apresentar suas diretrizes atuais para a economia a partir de uma visão explicitante marxista, como é o texto do último livro de Xi Jin Ping, atual presidente da China.

Renato admite que a luta pela dominância econômica da China não é apenas externa. “Se prevalece o capitalismo no mundo, a pressão sobre a China é enorme. Isso reflete em luta dentro do próprio Partido. Nós não somos idealistas. Nós partimos de realidade objetiva”, disse. Mas ele ainda não viu prevalecer uma corrente capitalista na China, fator político que ele considera decisivo para definir quem está no comando.

Embora o debate seja importante, não significa que, para o PCdoB, a China agora passa a ser o modelo, nem a lógica a se seguir. “A grande autocrítica que fizemos das revoluções do século passado foi de não copiar modelo. Quem copiou modelo não deu certo. Então, não somos nós que vamos copiar modelo, embora a experiência da China seja extraordinária e merece ser estudada”.

“Temos que ver o caminho própria e as condições próprias do nosso país”. O PCdoB segue um programa que é o Projeto Nacional de Desenvolvimento, que não foi levado à cabo, até agora. “Este projeto levado às ultimas consequências pode nos aproximar de uma transição ao socialismo. A essência do programa pode ser atualizada, mas é essa”, concluiu.

Capitalista, socialismo, comunismo

 

Qual a funcionalidade do socialismo, indaga Elias Jabbour, desde o início da pesquisa (Foto: Cezar Xavier)

Jabbour conta que, antes de estudar a economia da China, tema pelo qual é conhecido internacionalmente, era motivado, desde a graduação no curso de Geografia da USP pela pergunta: o socialismo pode funcionar? Daí sua busca pelas peculiaridades socialistas da construção econômica, da organização da produção, de uma sociedade de nível superior, do tipo de instituições que regulariam um regime socialista. Desde então, são 25 anos de publicações e pesquisas econômicas, ainda que o pesquisador não seja oriundo da área econômica. Mas ele considera tudo preliminar e longe, ainda, dos resultados que pretende alcançar, estando aberto a contribuições.

Jabbour explicita o fato de abandonar categorias clássicas marxistas para compreender fenômenos novos ocorrentes na China. Embora esteja na base de todo o seu estudo, o marxismo contribui menos para a compreensão da contemporaneidade que, por exemplo, o pensamento de Ignácio Rangel, a quem ele qualifica de “o maior pensador brasileiro do século XX”.

Classe hegemônica

A percepção de Rangel (1978) de que a “classe detentora do domínio” estratégico “é o que caracteriza o modo de produção e a formação social que sobre ele se edifica”, dão a senha para Jabbour dizer com tranquilidade que a China é socialista, ainda que convivendo com instituições remanescentes do capitalismo.

Quais são os dois níveis de abstração, ou seja, o que levou Jabbour a chegar à conclusão de que há algo novo surgindo na China? O crescimento do setor estatal na economia chinesa, acelerado desde 2009, mostra que o país se distancia – historicamente – de um modelo típico de “capitalismo de Estado”, e mais longe ainda de ser um “capitalismo liberal”. Em vez de modelo, o pesquisador prefere tratar de dinâmicas, fenômenos em movimento, em vez de modelos estáticos. “Considerar a China como capitalismo de Estado é algo muito frágil, como demonstrarei. E não são poucos os que consideram a China um país de capitalismo liberal, principalmente os neoliberais”, afirma ele.

O geógrafo prefere falar em “socialismo de mercado” como uma Nova Formação Econômico-Social  (NFES) que tem na complexidade seu principal atributo, pois implica se tratar de uma formação marcada pela convivência de diferentes estruturas/formações sociais. Quando fala em socialismo de mercado, ele apenas sugere uma nomenclatura que considera fascinante pelo que guarda de “unidade de contrários”. Conforme a fluência do debate se deu, Jabbour avançou para a terminologia Nova Economia do Projetamento, pela força que a questão do planejamento e da planificação têm no regime chinês.

A ideia de mercado é bastante controversa, pois há quem considere que o mercado, na concepção do Karl Polanyi, não existe desde o fim do século XIX, quando surgiram os monopólios e oligopólios. “Trato como socialismo de mercado, entre aspas, porque os chineses tratam como tal”.

Jabbour, como seus colegas de pesquisa, acreditam que a categoria formação econômica-social é muito mais completa e capaz de explicar um fenômeno complexo, que a de modo de produção.

“Socialismo de mercado” como uma NFES

Jabbour observa as diferenças sutis entre modo de produção, como uma categoria mais restrita à estrutura econômica, contra formação econômica social, que agrega a dimensão histórica, portanto complexa. Ele explicou que a categoria modo de produção fecha uma definição estrita, enquanto formação econômica social permite a convivência de elementos de distintos modos de produção.

Como exemplo, ele citou no caso brasileiro instituições que são muito próximas de uma formação tipicamente socialista, como a Petrobras, ou a Embrapa, com o grau de técnica e planejamento incorporado, ao mesmo tempo que existem instituições, que são tipicamente feudais.

“O STF, por exemplo, muitas vezes parece uma instituição feudal. O judiciário brasileiro é um tanto quanto avesso ao avanço e ao progresso. São anticapitalistas, inclusive, porque brecam o avanço do capitalismo. O Brasil é um caso interessantíssimo de convivência de instituições novas, velhas, novíssimas, antiquíssimas, na mesma formação econômica-social”, comparou.  Por isso, a formação econômico-social é, para ele, capaz de chegar à totalidade dessas esferas, e dominar a natureza desse fenômeno.

Autocrítica socialista

Tratar as primeiras experiências socialistas demanda um profundo exercício de visão de processo histórico. Na opinião de Jabbour, o seu contrário é a jaula do subjetivismo (podia ter sido melhor, a NEP podia ter ido mais longe…). Ainda que se admitam os erros, mas o legado da experiência soviética à luta dos trabalhadores de todo o mundo é inegável. “Foi, inclusive, introdutora da questão social na agenda política global”, acrescenta.

O pesquisador atribui à experiência soviética as possibilidades do regime chinês. A China é resultado da vitória da URSS na 2a. Guerra Mundial. Não existiria Mao Tse Tung, sem Lênin ou Stalin. “Existiria Mao Tse Tung, mas ele ficaria mais 50 anos vagando atrás de uma solução para aquele país”, corrige-se. Sem a experiência concreta soviética, não existiria a Terceira Internacional, o Partido Comunista da China, e consequentemente.

Há ainda o subjetivismo latente em visões que projetam o socialismo como um “retrato em negativo dos aspectos mais nocivos do capitalismo.” São aqueles comunistas que vão à Cuba, vêm problemas de abastecimento e voltam reacionários achando que o socialismo é pior do que o capitalismo. O próprio Marx já sinalizada para a convivência da transição socialista com instituições burguesas (e seus vícios).

Ou seja, instituições, valores, cultura de tipo capitalista, ou dos modos de produção anteriores vão continuar convivendo durante muito tempo no socialismo. “Sessenta anos de revolução e ainda existe racismo em Cuba. Por mais que os negros tenham tido vitórias significativas com a Revolução, ainda convivem com o racismo”, exemplifica. “A China, por sua vez, está começando a tratar a questão LGBT, depois de setenta anos de revolução. A China tem cinco mil anos de civilização, um Estado Nacional de 2500 anos e o socialismo tem setenta anos. Então, achar que o socialismo e seus valores vão predominar e se assentar facilmente sobre os outros, não vai! É uma unidade de contrários em movimento o tempo inteiro”, complementou.

Jabbour não confunde socialismo com definições que o senso comum coloca. É comum responder a “o que é o socialismo?” com “é a sociedade igualitária”, “é a sociedade da liberdade”, “a igualdade vai imperar”, etc. Partindo do que ele classifica como “socialismo” torna-se inadequada, a comparação entre essa concepção com outros conceitos e valores que o senso comum associa ao socialismo. Outra restrição que ele coloca na conjuntura defensiva em que o socialismo se encontra, a viabilidade do socialismo nos dias de hoje deve ser mais limitada e menos ambiciosa em comparação à época em que a URSS disputava a vanguarda do rumo da humanidade.

Defensiva ideológica

Pode ser defensivismo, mas estou convencido disso. Ainda mais agora, com essa reação conservadora americana!”, enfatiza. A partir de 2009, ocorreram importantes transformações no capitalismo, conforme pontua ele. Uma delas é que os americanos salvaram os bancos, ou seja, Obama “bancou politicamente” salvar o sistema financeiro. A contrapartida disso, poucos sabem, é que a emissão do dólar foi estatizada. Antes, o dólar podia ser emitido por bancos privados, o que Obama proíbe, permitindo apenas ao FED e ao Banco Central europeu. “Isso elevou muito a capacidade dos EUA intervirem no mundo. É assim, por exemplo, que cada vez mais se ouve falar em bloqueio de recursos de um importante membro do governo iraniano ou o congelamento de recursos de representantes do governo venezuelano na Suíça. Todos os ativos em dólar, no mundo, de países não alinhados com os EUA são bloqueados”, exemplifica.

Ou seja, essa mudança institucional, esse reenquadramento do mercado pelo estado nos EUA tem permitido que as economias de países como Irã e Venezuela sejam estranguladas financeiramente. Não somente isso, eles estrangulam a Venezuela por este mecanismo que não existia antes de Obama, e ainda dizem que a inflação lá é 10.000% “porque esses caras não entendem de economia”. A Venezuela tem US$ 80 bi em contas no exterior que não podem ser usados para importar alimentos, porque os EUA se apossaram desse dinheiro. “O nível da luta de classes no mundo, hoje, é esse! Achar que o imperialismo está caindo de maduro, não acredito muito nisso. Pelo contrário, há uma decuplicação da capacidade de intervenção deles no mundo”, avalia Jabbour. “Dentro desse cenário, falar em socialismo como ofensiva é complicado. João Amazonas falava da derrotada estratégica do socialismo, e isto continua de pé”.

Jabbour alerta para a necessidade de sermos mais cuidadosos em discutirmos o que é “socialismo” ou “não socialismo” (se país “a” é mais socialista que o país “b”) tendo como fundo preceitos morais, existencialistas, o “bem contra o mal”. Enfim, trocar a sedução exercida pelos juízos morais de valor por visões mais concretas, objetivas, históricas e altamente politizadas. “Costuma-se dizer que Cuba é socialista, porque é pobre, mas a China é capitalista, porque é rica. São juízos de valor da direita que costumamos absorver”, alerta ele.

Na China, se você está em Shanghai, está no século XXII, em que o grau de planificação urbana já indica o nível que o socialismo pode alcançar. Você anda mil quilômetros, você chega na comuna primitiva, que são os chineses na agricultura de subsistência e que não querem trocar de vida. Moram em ocas, inclusive. Ou seja, cinco mil anos de diferença histórica convivendo na mesma formação social”, relata Jabbour. É contemporâneo ter na China capitalismo, ter socialismo e comuna primitiva, modos de produção de diferentes épocas históricas, distantes historicamente, mas que espacialmente são muito próximos uns dos outros. “Encontrar a lógica de funcionamento de um país como esse não é fácil!”

 Não se trata de uma sociedade estruturada no mais alto patamar possível de desenvolvimento humano, ou seja, o socialismo em sua plenitude. Se não levar isso em consideração, não se entende grandes coisas. A China é um país muito desigual. Qual é a principal desigualdade que a China tem que enfrentar em plano internacional? “Eles têm que alcançar o nível de desenvolvimento igual ou superior ao dos países capitalistas desenvolvidos. Esse é o grande desafio deles para sobrevivência política, como entidade política na República Popular da China”.

Em sua opinião, alcançar o centro capitalista depende de tarefas que foram realizadas pela revolução burguesa. Fazer revolução agrária não é tarefa dos trabalhadores no poder, fazer a educação universal não é papel dos trabalhadores no poder. A China está numa fase de cumprir as tarefas da revolução burguesa. “Onde não existiu figuras como Getúlio Vargas, Ataturk na Turquia ou Bismark na Alemanha, – ou seja, senhores feudais ou senhores de terras que chegam ao poder e de cima pra baixo fazem o capitalismo acontecer (a via prussiana) -, onde não apareceu estas figuras, apareceram Xian Kai Cheq e Kerensky, que foram incapazes de levar a modernização capitalista à China e à Rússia”, compara.

Nessa incapacidade, quem vai cumprir o papel vai ser o Partido Comunista da China e da URSS. Na linguagem de Gramsci, o Partido Comunista é o príncipe moderno, que cumpre as tarefas da revolução burguesa. “Inclusive o PCdoB está aí para cumprir as tarefas da revolução burguesa. Nós temos que entender como funciona o processo de acumulação capitalista e ter o desejo de comandar o processo de acumulação capitalista no Brasil. Senão, a gente fica no denuncismo do capitalismo, em vez de comandar o processo para o socialismo possível”.

Estruturas/formações sociais predominantes

Admitindo que existe capitalismo na China e admitindo que é uma poderosa estrutura, além de ter sido reconhecida, legitimada e sustentada por leis e regulamentos, a ampliação de seu escopo de atividades elevou-se, também, a partir de transferências massivas de ativos estatais ao setor privado, ocorridas entre 1994 e 2000, sobretudo em pequenas e médias empresas estatais.

A China privatizou milhares de pequenas e médias empresas na década de 1990. Na China, as reformas econômicas no campo fazem surgir um setor privado pujante. Shenzhen, que é uma grande cidade do sul da China é ultradesenvolvida, pois 80% dos empresários privados eram camponeses médios, em 1978. Isto, porque o desenvolvimento se configurou pela via americana, quando, segundo Lênin, surgem mudanças institucionais em que o pequeno granjeiro vira capitalista.

A China é uma combinação de duas vias, com uma ousadia a mais, de acordo com Jabbour. O socialismo soviético, que é a pré-história do socialismo, como costumamos dizer, é uma via prussiana. Uma classe toma o poder do estado e, a partir do poder, implementa uma indústria infante, que é a indústria pesada. Evidente que, diferentemente da via junker, que é a via alemã, esta via prussiana é conduzida pelo Partido Comunista. A China é a combinação de uma outra via. Tem essa via prussiana, que é a grande siderurgia, implantada por Mao Tse Tung, e tem a via americana, que é esse amontoado de empresários privados que surgem a partir das reformas econômicas.

“A introdução que o Lênin faz na terceira edição de “O desenvolvimento capitalista da Rússia” é essencial pra compreender isso. São duas vias de acumulação na China e as duas comandadas pelo Partido Comunista”, completa.

Apesar dos avanços em matéria de mecanização da produção agrícola na China, estima-se que 300 milhões de chineses ainda estão ocupados na pequena produção agrícola voltada ao mercado. Embora diminua a quantidade de terra agricultável todo ano, aumenta a produtividade da terra. Isso significa que a agricultura na China está se tornando ao longo do tempo, de forma planificada, um setor subsumido à indústria. “Um dos equívocos que a esquerda brasileira comete é separar agricultura da indústria, e pequena produção de grande produção. Isso é um equívoco conceitual terrível do ponto de vista de Lênin”.

O que se chama agricultura familiar, no marxismo se chama pequena produção mercantil. O que define uma propriedade não é ser de uma família, mas pra onde vai essa produção. “Se é para o mercado, é produção mercantil. Faço essa provocação, porque muitas vezes abraçamos categorias estranhas ao marxismo. Na política pode até servir, mas para analisar as coisas como são, temos que ter uma rigidez conceitual e teórica. Assim, agricultura familiar não existe, o que existe é pequena produção”, pontua.

A tendência da agricultura é o campo virar cidade e a tendência da agricultura virar um ramo da indústria. Isso está acontecendo na China, agora, exportando alimentos. A China é exportadora de carne de porco e disputa o mercado japonês com a Califórnia (EUA), na exportação de hortifrútis, por exemplo.

Com as reformas econômicas de 1978, a elevação da produtividade do trabalho da agricultura levou a uma sobra de mão de obra que não foi para o litoral, mas para unidades de produção. Uma coisa que o Lênin fala que é a tarefa do economista marxista, é estudar como se dão e surgem novos e superiores esquemas de divisão social do trabalho. Portanto, observamos que, a partir de 1978, surgem novos e superiores esquemas de divisão social do trabalho, a partir do interior do país. São essas townships and villages enterprises que precocemente nascem conectadas ao mercado exterior. Atualmente em declínio, teve seu auge entre os anos de 1984-1997. Compreender como essas empresas se transformam de pequenas em gigantes, em 40 anos, é fundamental para quem quer entender o futuro do socialismo. Mais do que isso, precisamos entender como funciona uma empresa, como funciona o mercado financeiro.

O capitalismo privado é o setor criado, guiado e formado sob as asas do Partido Comunista da China (PCCh). A existência desta estrutura/formação social na China é motivo de grandes exageros e equívocos sobre seu poder e papel na economia e sociedade chinesa em geral. As privatizações e a abertura de capital de empresas estatais e coletivas a partir de meados dos anos 1990 foram o primeiro movimento massivo de concentração de capital em mãos privadas na China.

O capitalismo de Estado é uma formação com visíveis contornos nas relações de dependência do capitalismo privado com as políticas executadas pelo Estado, por exemplo, como beneficiária dos efeitos de encadeamento gerados pelas corporações estatais, acesso a crédito em bancos estatais etc. “A maioria, ou mais de 90% dos marxistas no ocidente acha que a China é capitalismo de estado”, observa ele.

Lênin cria a Gosplan, que é uma agência de planificação econômica que ele inaugura na URSS. A Coreia do Sul copia a Gosplan e forma um superministério do planejamento econômico. O Ministério da Indústria e Comércio do Japão é uma cópia muito melhorada da Gosplan. Na época eram necessários esses superministérios, para acompanhar e forçar o setor privado a fazer o que você quer. Com a transformação do capital financeiro em algo muito poderoso, o setor privado pode ser controlado a partir do sistema financeiro. “Se é privado ou estatal, está ficando cada vez menos importante. Quero saber de onde vem o crédito. Isso é o fundamental”, define Jabbour.

O socialismo é a formação social que define a própria natureza do Estado Nacional chinês. Tendo o Partido Comunista a força política que controla o Estado, que por sua vez detém o controle dos fatores objetivamente estratégicos.

É isso que define o caráter socialista da China.

Ciência embrionária

Jabbour avança e inova ao tentar definir as lógicas que regem o movimento do “socialismo de mercado” na China. Marx usa o termo lei, mas eu prefiro falar em lógica, que dá uma noção de dinâmica. Ele parte do conselho de Rangel, quando diz que estudar esses modos de produção significava captar “a natureza dessas combinações e, se possível, classificá-las e pôr em evidência as leis que governam seu nascimento e desenvolvimento, seu princípio e seu fim”.

Primeiro, que ele nota que esses diferentes modos de produção e suas devidas lógicas de funcionamento, não se limitam a coexistir. Coabitam em conflito e exercem pressão – uma sobre a outra. “Portanto, quando me perguntam qual a tendência, a tendências é o conflito. Este é o movimento, e o motor do movimento é a contradição entre estas formações de diferentes épocas. Existe unidade de contrários o tempo inteiro”.

Por exemplo, a expansão da economia de mercado pressiona e impõe a tendência ao desaparecimento da economia natural de subsistência; o mesmo ocorre na pressão que a transformação da agricultura em um ramo da indústria faz com a pequena produção mercantil.

O mesmo ocorre entre o setor socialista da economia e a capitalista privada, com a última sendo pressionada diante da tendência de cada vez maior centralização da grande produção industrial nos 149 conglomerados empresariais estatais e o já citado processo de aumento contínuo do controle governamental sobre os fluxos da renda nacional. “Este movimento tem política no meio”, complementa.

Na década de 1990, era o contrário. O setor capitalista que exercia pressão sobre a economia planificada. “Tanto, que a China teve traços de neoliberalismo nos anos 1990, como destruição do estado de bem estar social e privatizações em massa”.

A lei do valor (lei geral do capitalismo) não é passiva de superação sob o “socialismo de mercado”, visto como parte do início do processo histórico de construção do socialismo. O movimento clássico seria que a lei do valor fosse exercida sem intervenção do estado, apenas as empresas concorrendo entre si pela preferência dos consumidores. Essa economia nunca existiu, conforme observa Jabbour, embora a lei do valor exista. Onde ela atua com maior nível de restrição é na economia socialista. “Por isso é tão complicado falar em mercado na China, quando a lei do valor age de forma tão restrita. Mesmo nas socialdemocracias europeias, com estado de bem estar social forte, a lei do valor também age de forma bastante restrita”, compara.

Quando fala de pressão do capitalismo sobre as instituições da formação econômica chinesa, Jabbour não fala apenas de produção, mas de valores, também. A cultura de acumulação e de enriquecimento exerce pressão sobre o socialismo. “Pode até parecer um trabalho economicista, mas não é”, declara o autor.

O ciclo estatal e a hora do setor privado

Na opinião do geógrafo, as relações entre o estado, o setor privado, o mercado e o processo de desenvolvimento serão equilibrados, conforme as mentes nacionalistas mais brilhantes do país definam em que lugar o estado deve estar em determinado momento da história, e em qual momento da história o setor privado vai estar presente. “Para quem trabalha com noções de desenvolvimento econômico, como fazer com que esse desenvolvimento ocorra ao longo da história, sem que haja disrupturas, mas com continuidade. Saber qual é o lugar do estado e do setor privado ao longo da história. Isso serve para o capitalismo e para o socialismo”.

É neste movimento entre estado e setor privado, dominando momentos diferentes da história econômica, que Jabbour observa ciclos da dinâmica socialista, assim como ocorrem os ciclos de crises capitalistas. Há uma contínua reorganização de atividades na China, mediada pelo surgimento cíclico de instituições que delimitam uma contínua reorganização de atividades entre os setores estatal e privado da economia.

“Marx descobre os chamados ciclos econômicos decenais (juglarianos), enquanto eu trabalho com os ciclos longos da conjuntura (Kondratiev). Nós descobrimos a ocorrência desses ciclos na China. A China tem ciclos decenais de acumulação. Ao final do ciclo, no ponto de estrangulamento, os setores privado e estatal mudam de papel”, ressalta Jabbour.

Por que a China cresce há 40 anos consecutivos? Os chineses conseguem elaborar e executar institucionalidades anteriores às demandas do processo de desenvolvimento. Quando chega o problema da acumulação, já existem institucionalidades pra dar cabo daquilo. Todo problema econômico é um problema institucional.

Jabbour exemplifica estas institucionalidades criadas em função do desenvolvimento, mencionando a realidade brasileira. Na época do Governo Lula, segundo ele, era difícil discutir desenvolvimento econômico sem discutir tripé macroeconômico. “Com tripé macroeconômico não tem como ter crédito para desenvolvimento. Meta de inflação é uma institucionalidade que não permite projeto de médio prazo”, critica ele. Do mesmo modo, a alternativa ao Governo Bolsonaro é acabar com o teto de gastos imediatamente, pois é uma institucionalidade bloqueadora do desenvolvimento.

O Plano Real criou institucionalidades, diz ele, que não são simpáticas a projetos em que o Estado interfira muito na economia. “Eu atribuo a queda de Dilma, o golpe, a um clash institucional”. Havia instituições do estado de caráter neoliberal instituídas pelo Plano Real, e existiam instituições que o Governo Lula tentava colocar em execução que não combinam. Então, o Governo tinha uma política e o Banco Central outra.

Decênios

Isso não significa, que o crescimento do setor privado só ocorre porque há uma diminuição do papel do Estado, como acreditam marxistas acadêmicos que não simpatizam com a China. O que existe, no concreto, é uma recolocação estratégica do Estado. A reação chinesa à crise de 2008 demonstrou que houve um processo caracterizado pela construção de um Estado que reúne a capacidade tanto para agenciar políticas de socialização do investimento (Keynes, não Marx) quanto de investidor e emprestador. Foi além, promovendo deslocamento e concentração de seu próprio setor produtivo em indústrias-chave, que combinam alta produtividade com grandes retornos em escala. Já o setor privado longe de ser o protagonista do processo, não passa de um setor ancilar das corporações estatais.

Na China, o estado prepara o território para a abertura ao capital estrangeiro, que cresce exponencialmente naquele país. Mas, a cada dez anos, Jabbour e seus colegas de pesquisa perceberam que o papel do estado também aumenta sua capacidade de intervenção.

Em 1994, ocorre um grande ajuste fiscal, em que a taxa de câmbio era estatizada, são lançadas as primeiras grandes molas mestras de uma moderna economia monetária. Com bancos de desenvolvimento, a China exerce controle sobre a entrada e saída de capitais. São três institucionalidades que colocam a ação de estado em outro patamar. Ainda assim, o setor privado “bombou”!

Quando surge essa economia monetária, cria-se condições para que o estado comece a ter capacidade de lançar pacotes fiscais. Em 1999, ocorre um ensaio geral de como o estado deveria passar a intervir na economia a partir daquele momento. A China não fez desvalorização cambial competitiva. Ela parte para o desenvolvimento do oeste. Mais de US$ 600 bi em crédito bancário foram alocados para esta tarefa, desde 1999, de forma imediata.

Então, a China configura um estado empreendedor, que é financiador e executor. Este setor estatal novo que surge com 149 conglomerados empresariais é uma entidade que provoca efeito de irradiação na economia. O setor privado depende das estatais para ter demanda. Ou seja, ao longo do tempo, o estado foi se configurando de forma qualitativa, e o setor privado, grande, gigante, foi ficando cada vez mais dependente de um estado cada vez mais poderoso.

O estado chinês é muito mais poderoso do que em 1978, com uma capacidade de intervenção na economia muito impressionante. Um controle sobre os fluxos de renda, que é o que determina o que é socialismo ou capitalismo, é muito maior do que qualquer país capitalista na história.

Jabbour cita países “capitalistas de estado” sérios, Japão-Coreia-Alemanha, que, conforme destaca ele, são países capitalistas que deram certo e merecem ser estudados. A Coreia manda o setor privado investir, dá o dinheiro, mas obriga a empresa a investir e exportar xis. Ou seja, o setor privado é escravo do estado na Coreia. “Mesmo assim, na China o controle sobre os fluxos de renda pelo estado são maiores do que os observados no Japão-Coreia-Alemanha. Mais uma evidência de que há uma formação social-econômica nova surgindo no mundo”, diferencia ele.

A “dialética de Saturno”

O socialismo levanta expectativas de tipo messiânicas. Eis a fonte por onde age de forma violenta a “dialética de Saturno”. Jabbour faz essa provocação para mostrar que as incompreensões e expectativas em relação ao socialismo acabam por frustrar aqueles que lutaram por ele. Ele lembra, em texto de Domenico Losurdo, que todo revolução une todos em torno da derrubada de uma ordem, mas fragmenta-os na tentativa de estabelecer uma nova ordem revolucionária.

Foi assim que se frustraram bolcheviques quando viram que a revolução não acabaria com o dinheiro ou não “liberou o amor”. Da mesma forma, se dá com a satisfação material de diferentes necessidades individuais. Daí a dificuldade de se admitir no Ocidente que na China vigora o socialismo. No socialismo, a igualdade material não é possível e no comunismo esta “igualdade material” não tem sentido.

Daí a ênfase dos fundadores do socialismo científico do comprometimento dos trabalhadores com o desenvolvimento das forças produtivas. Na academia, os marxistas denunciam o desenvolvimentismo, inclusive do Governo Lula. “Não se dão ao trabalho de ler o manifesto comunista. Além de Adam Smith e William Petit, no campo dos trabalhadores, Marx é o primeiro desenvolvimentista”.

Coincidentemente, segundo o presidente chinês Xi Jinping (2017):

Compreendendo firmemente esta condição nacional básica de que a China se encontra na fase inicial do socialismo, baseando-se solidamente nesta maior realidade e persistindo com firmeza na linha fundamental do Partido – linha vital do Partido e do Estado e linha de bem-estar de todo o povo, todo o Partido deve dirigir e unir o povo de todas as etnias do país, manter a construção econômica como tarefa central. (…). Emancipar e desenvolver as forças produtivas sociais constitui uma exigência inerente ao socialismo.

Como forma de síntese, Jabbou encerra sua apresentação com as seguintes observações de Marx e Engels, (1848 [1998], p. 56):

O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar, o mais rapidamente possível, o total das forças produtivas.

Como Jabbour observa, Marx em nenhum momento fala em melhorar as relações de produção antes de melhorar as forças produtivas.

“A ênfase que se dá à bandeira democrática em detrimento da bandeira do desenvolvimento, é resquício da falta de uma leitura dessa. Na esquerda é muito comum isso de que tudo é uma questão democrática, tudo é uma questão de falta de voz, porque quer analisar somente as relações de produção. Quando se esquece as forças produtivas, vira isso: marxista que é contra o desenvolvimento, contra alianças amplas, contra táticas flexíveis, etc” conclui ele.

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