Dynéas Aguiar faleceu em 2013, aos 81 anos. A história da sua vida se entrelaça com a história do PCdoB. Filiado desde 1950, esteve entre o núcleo de dirigentes que reorganizou o partido em 1962. Integrou o Comitê Central até 1993, e passou a exercer sua militânica em Campos do Jordão e depois no Centro de Documentação e Memória. Cultivou a postura revolucionária até os últimos dias. Sua vida é um exemplo de abnegação e de valorização do militante do partido, título que ele considerava o mais importante. ‘Comunista é comunista onde estiver’, afirmava ele. Em sua apresentação ao livro, Buonicore destaca: “Os últimos anos da vida de Dynéas (…) mostraram que cargos de direção não são vitalícios e nem o seu abandono deve ser entendido como fim de carreira para um militante”. 

Leia na íntegra a apresentação do livro, escrita pelo autor, Augusto Buonicore.

Apresentação do autor

Quando vivo, Dynéas olhava com maus olhos qualquer tentativa de escrever um livro sobre sua vida. Gostava de dizer: “O importante mesmo é o Partido, o coletivo, e não os indivíduos”. Esta era a mesma posição de João Amazonas, seu camarada e histórico dirigente do PCdoB. Ambos se mostravam avessos a qualquer coisa que aparentasse personalismo. Felizmente, aos poucos, foram compreendendo que as histórias dos indivíduos também importavam. Era impossível separar a trajetória de uma organização política das pessoas que a compõem, especialmente quando se trata de um Partido Comunista prestes a completar cem anos de existência.

Ao final, concordou com a elaboração de uma biografia, mas para ser publicada somente quando ele morresse. Porque isso, perguntei-lhe? Respondeu-me categórico: “É que muitas pessoas no final da vida acabam abandonando e mesmo traindo os ideais socialistas”. Essa, então, era sua maior preocupação: o medo de uma possível capitulação ideológica. Claro que esse não foi o seu caso. Ele morreu aos 81 anos nas trincheiras da luta pelo socialismo no Brasil. Seu desaparecimento em junho de 2013 interrompeu as entrevistas que vínhamos realizando, e me levou, finalmente, a começar a redação de sua biografia.

Antes de prosseguirmos, voltemos algumas décadas atrás. Até onde me lembro, conheci Dynéas em meados dos anos 1980 quando participei de um curso nacional de formação promovido pelo Centro de Estudos e Pesquisa Social (CEPS) – uma cobertura usada pela Escola Nacional do PCdoB. Contudo, na época, não chegamos a estabelecer relações mais próximas. A saída dele do Comitê Central em 1993 dificultou ainda mais nosso relacionamento.

Em 1997, logo após o 9º Congresso do PCdoB, criou-se uma comissão específica para a redação da história do Partido Comunista do Brasil. Da qual, honrosamente, fiz parte. Ela realizou ações importantes como as entrevistas com João Amazonas, dois seminários nacionais sobre a história do PCdoB, a produção de uma série de artigos autorais publicados na revista Princípios, e mais tarde transformados no livro Contribuições à história do Partido Comunista do Brasil, organizado por José Carlos Ruy e por mim. A comissão também organizou um livro com os principais documentos do PCdoB produzidos entre 1960 e 2000.

Essas iniciativas foram importantes, mas ainda insuficientes diante do tamanho da tarefa a ser realizada. Assim, em 2008, visando a recuperar e manter viva a história do PCdoB, a direção nacional resolveu constituir o Centro de Documentação e Memória (CDM) vinculado à Fundação Maurício Grabois.

Nesse processo, ainda em 2006, comecei a realizar uma série de entrevistas com Dynéas. As primeiras ocorreram na sede do Comitê Municipal do PCdoB em Campinas. Aproveitava os momentos de sua viagem, vindo de Campos do Jordão, para visitar a filha Tininha, o genro e os netos em Valinhos, cidade vizinha à minha.

A partir de 2009, quando se mudou definitivamente para Valinhos e passou a trabalhar no CDM, as coisas se tornaram mais fáceis para todos nós. Ele tornou-se fonte inesgotável de informações sobre a história partidária. Na época, era o último representante vivo daquela geração de dirigentes que reorganizou o PC do Brasil em 1962. João Amazonas havia morrido alguns anos antes.

Ao lado do jovem historiador Fernando Garcia e de outros pesquisadores, fizemos com ele inúmeras entrevistas temáticas: sobre as conferências e os congressos partidários; a composição das direções; relações internacionais; preparação da luta armada; incorporações e cisões internas etc. Muitas lacunas históricas foram enfim preenchidas nesses agradáveis encontros. Eles serviram para aumentar nossa convicção de que a história oral tem um papel muito importante no estudo de um partido político obrigado a viver durante a maior parte da sua vida na clandestinidade.

Dynéas desenvolveu vários outros projetos. Entre eles o intitulado O que se deve ler para conhecer o PCdoBrasil – no qual elencou os documentos e livros mais importantes produzidos pelo e sobre o Partido Comunista, no Brasil -, e nos ajudou na elaboração dos roteiros das entrevistas com antigos militantes.

Quando adoeceu, eu o visitava semanalmente na sua casa e continuava gravando seus depoimentos. Mesmo com muita dificuldade de locomoção, Dynéas queria dar expediente no Centro de Documentação e Memória. Pegava-o na rodoviária de Valinhos e íamos de ônibus à cidade de São Paulo. Trabalhou incansavelmente até quando pôde fazê-lo.

Num certo momento desse processo, passou a falar um pouco mais de sua vida. O projeto, contudo, ficou inconcluso com sua morte inesperada. A narrativa chegou até a consolidação da legalização do PCdoB em 1988. Por isso, pensei seriamente em terminar a biografia neste ponto. A obra se basearia apenas nos depoimentos dados por ele. Seria na verdade um livro de entrevistas. Uma opção interessante e prática. Tudo estava consolidado nas fitas cassete e nos CDs e DVDs. Bastava editar aquele rico material. E muito desse trabalho já havíamos feito juntos. Ele leu e corrigiu à mão boa parte das transcrições.

Contudo, terminando em 1988, deixaria de tratar de um momento de sua vida que pode ter importância no processo de educação ideológica das novas gerações militantes. Ficaria excluído o período que deixou o Comitê Central do PCdoB e voltou a atuar, como simples militante, nas bases partidárias de uma cidade do interior paulista: Campos do Jordão. Uma passagem feita sem traumas ou ressentimentos, com a mesma abnegação e espírito juvenil que marcara sua militância até então. Como dito ao final do livro: “Os últimos anos da vida de Dynéas (…) mostraram que cargos de direção não são vitalícios e nem o seu abandono deve ser entendido como fim de carreira para um militante. ‘Comunista é comunista onde estiver’, afirmava ele. Outro velho camarada de armas, Diógenes Arruda, gostava de dizer: ‘Ser comunista é uma opção cotidiana’”. Esses ditados se encaixavam perfeitamente à personalidade do nosso biografado.

Por isso decidi continuar sua história até o final, sabendo que, nesses casos, o final é sempre incompleto e provisório. Dynéas permanecerá vivo enquanto suas ideias continuarem atuais, animando corações e mentes das novas gerações. E sempre aparecerão novas histórias contadas pelas centenas de pessoas que conviveram com ele durante décadas de militância ininterrupta.

A vida de Dynéas

Qual a importância da biografia de Dynéas Aguiar? Ela permite reconstruir, através de um ponto de vista único, a história do Partido Comunista do Brasil e da esquerda brasileira na segunda metade do século 20.

O nosso personagem ingressou no Partido Comunista e na União da Juventude Comunista (UJC) em 1950. Tinha 18 anos de idade. Tornou-se rapidamente um dos principais dirigentes estudantis secundaristas brasileiros, elegendo-se por duas vezes presidente da União Nacional dos Estudantes Secundaristas (Unes). Um período em que o movimento estudantil secundarista esteve dividido e com duas entidades nacionais: a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), nas mãos da direita, e a Unes, comandada por jovens comunistas e seus aliados.

Dynéas dirigiu as históricas greves dos candangos da construção civil na então recém-criada capital da República: Brasília. Participou do processo de reorganização do PCdoB em 1962, passando a compor o seu Comitê Central. Ainda atuando no Distrito Federal, envolveu-se no Levante dos Sargentos e, depois, no entrevero armado em Mato Seco, que lhe custaram a primeira detenção e dois processos na justiça.

Logo após o golpe militar de 1964, liderou a primeira turma enviada pelo PCdoB à República Popular da China para fazer um curso teórico e militar de seis meses. Voltando ao país, passou, ao lado de outros camaradas, a preparar uma área de apoio à futura guerrilha rural no interior de Goiás. Entre 1966 e 1972, compôs a estratégica Comissão Nacional de Organização (CNO), sob a coordenação de Carlos Danielli. Neste mesmo período, assumiu a secretaria política dos comitês regionais do Rio Grande do Sul e de São Paulo.

Com o início da Guerrilha do Araguaia (1972), foi, juntamente com Diógenes Arruda, enviado ao exterior para organizar um movimento de solidariedade à luta do povo brasileiro e denunciar os crimes da ditadura militar. Viveu no Chile e na Argentina, onde ajudou a articular os partidos marxista-leninistas da América Latina.

Quando, em dezembro de 1976, ocorreu Chacina da Lapa na qual caiu a reunião do Comitê Central, ele ainda estava fora do país. A tragédia, que culminou na morte de três dirigentes nacionais e na prisão de outros tantos, levou à formação de um núcleo restrito de direção no exterior. Entre os seus componentes estavam João Amazonas, Diógenes Arruda, Renato Rabelo e Dynéas.

Ele se tornou um elemento essencial na montagem da 7ª Conferência Nacional do PCdoB, realizada na Albânia, e um dos principais responsáveis pela reestruturação do Partido. De volta ao Brasil – um pouco antes da Anistia –, tornou-se, na prática, o secretário nacional de Organização. O segundo cargo mais importante na hierarquia partidária. Sob sua direção, foi levada a cabo a campanha pela legalidade do PCdoB, conquistada em 1985 e consolidada em 1988. Um momento muito feliz para aqueles que, como Dynéas, nunca tinham visto o seu partido legalizado, podendo disputar eleições livremente com sua legenda e seus símbolos próprios – e tendo até horário gratuito em cadeia nacional nas rádios e TVs brasileiras. As coisas, realmente, pareciam ter mudado na vida do país e daqueles abnega[1]dos militantes.

Referindo-se ao 7º Congresso do PCdoB de 1988, o primeiro realizado na legalidade desde a cassação do registro em 1947, Dynéas afirmou: “Foi uma coisa muito emocionante para nós, que tínhamos vivido todos aqueles anos na dura clandestinidade. Eu olhava aqueles milhares de militantes, no ato de encerramento, a maioria composta de jovens, gritando ‘1, 2, 3, 4, 5 mil e viva o Partido Comunista do Brasil!’, e me lembrava dos inúmeros camaradas assassinados pela ditadura. João Amazonas fez uma intervenção emocionante sobre aqueles que haviam tombado para podermos estar ali. Nosso partido foi muito sacrificado, mas não foi só ele. Desapareceram companheiros valorosos, que tinham grande contribuição a dar ao país. Bom, enfim, isso faz parte da vida, faz parte da luta dos povos por um mundo melhor”. Não contendo sua emoção ao falar daquela cena, chorou.