Roumain (à direita) com Guillén no Haïti (6 a 12 de agosto de 2008)

(Escrito no Brasil, na casa Portinari / Cosme Velho, 103/Rio)

 

Grave a voz lhe fluía.
Triste e severo, embora
aço e lua por fora.
Ressoava e ardia.

 

Em meio à luz em que ia,
parou e disse: – Agora
eu morro! É minha hora.
(Inda era sonho o dia.)

 

Trigueira a face sua
passar, e a sombra suave
voar, haitiano, viste?

 

De aço foi e de lua.
A voz lhe fluía grave.
Era severo e triste.

 

Ai, bem sei, bem se sabe que estás morto!
Rosto fundamental, seio profundo,
oh! tu, deus abatido,
morto já como morre todo mundo.
Morto de pele ausente e de polido
frontal, teu filosófico e desperto
crânio de sonho erguido;
morto sem roupa nem mortalha, morto
flutuando em águas de implacável olvido,
morto já, morto já, morto já, morto.

 

Entretanto, recordo.
rememoro, entretanto.
Por exemplo, recordo o paletó
de prócer quotidiano:
o de Paris
de fumo gris,
de persistente gris
o de Paris
e o paletó de fumo azul do traje haitiano.
Revejo seus sapatos,
franceses, bem se via,
e umas calças listradas que trazia
numa foto que fêz, Cônsul, no México.
Recordo
o seu cigarro demoníaco
de lume perspicaz;
lembro a caligrafia de letras desligadas,
independentes, tímidas, duras, de pé, à esquerda;
recordo
a caneta-tinteiro, curta, negra, grossa, “Pelikano”,
de guta-percha e ouro;
recordo
seu cinto de fivela e duas letras.
(Ou uma só? Não sei, me falha,
vai-se-me aqui um pouco a memória;
talvez era uma só, um grande R,
mas não estou seguro…)
Revejo
as gravatas, as meias e sua pasta.
(Uma pasta de Ministro,
ambicioso, de couro.)
Relembro
seus poemas inéditos,
seus artigos polêmicos
e suas notas sobre negros.
Talvez seja também tudo isso morto,
ou, quando muito, coisas de museu
familiar. Eu as conservo.
Por aqui estão, as guardo.
Quero dizer que as recordo.

 

E tudo mais, o resto,
o que falávamos, Jacques?
Ai, o resto não muda, isso não muda!
Ali está, permanece
como uma enorme página sabida e ressabida,
que todos dizem de cor,
que ninguém dobra,
que ninguém vira, arranca
dêsse tremendo livro aberto haitiano,
dêsse tremendo livro aberto
na mesma página sangrenta haitiana,
na mesma única e só, aberta página
medonha haitiana faz trezentos anos!

 

Sangue nas espáduas do negro inicial.
Sangue no pulmão de Louverture.
Sangue nas mãos de Leclerc
tremendo já de febre.
Sangue na látego de Rochambeau,
com seus sedentos cães.
Sangue no Pont-Rouge.
Sangue na bota dos ianques.
Sangue na faca de Trujillo.
Sangue no mar, no céu e na montanha.
Sangue nos rios e nas árvores.
Sangue no ar.

 

(Esquecia contar que justamente, Jacques,
o personagem deste poema,
murmurava, às vezes: – Haití
é uma esponja empapada em sangue.)

 

Quem irá espremer a esponja, a insaciável
esponja? Talvez êle,
com seus séculos de ódio. Talvez êle,
com seus dedos de sonho. Talvez êle
com sua celeste força…
Êle, Monsieur Jacques Roumain,
que falava em nome
do negro Imperador, do negro Rei,
do negro Presidente
e de todos os negros que nunca foram mais que
Jean
Pierre
Victor
Candide
Jules
Charles
Stephen
Raymond
André
Negros descalços ante o Champ de Mars,
ou no tíbio mulato caminho de Petionville,
ou mais acima,
no já frio branco caminho de Kenskoff:
negros inda não fundados,
sombras, zumbis,
lentos fantasmas da cana e do café,
carne febril, laceradora,
primária, pantanosa, vegetal.

 

Êle vai espremer a esponja,
êle vai espreme-la.
O sol então verá duro antilhano,
qual se rompesse telúrica veia,
avermelhar-se o pávido oceano.

 

E flutuarem, sem corda e sem cadeia,
colos puros, que são sôlto cardume,
almas não, corpos sim, que a dor arqueia.

 

Móvel incêndio de afilado lume,
lamberá com sua língua prometida
do fixo plaino ao enublado cume.

 

Oh! aurora dos tempos, ascendida!
Oh! mar, oh! mar que o sangue transbordou!
O passado passado não passou.
A nova vida espera nova vida.

 

Pois bem, e nisso estamos, Jacques, distante amigo.
Não porque tenhas ido,
não porque te levaram, oh! que digo,
não porque te fecharam o caminho,
parou ninguém, ninguém se tem detido.
Ás vezes, faz frio, é certo. Outras, um estampido
nos ensurdece. Há horas de ar líquido,
lacrimosas, de estertor e gemido.
Em muitas ocasiões consegue um rio
com martelo brutal ver a ponte destruída…

 

Mas a cada suspiro nasce um filho.
A noite, todo dia, pare um sol otimista
e amarelo, que fecunda o baldio.
Mói sua dura colheita o moinho.
Alça-se, cresce a espiga do trigo.
De rubras bandeiras cobrem-se os hinos.
Vêde! Chegam envoltos em pó e farrapos os primeiros
                                       [vencidos!
O dia inicial inicia sua grande luz de verão.
Venha meu morto grave, suave, haitiano, irmão,
e erga outra vez, de tempestuoso punho, a mão.
Cantemos, companheiro, nossa fraterna canção.

 

Enflorece plantada a velha lança.
Em nossas mãos arde a esperança.
A aurora é lenta, mas avança.

 

Cantemos diante dos frescos séculos recém-despertos,
sob a estrela madura suspensa em noturna fragrância
e ao longo de todos os caminhos abertos na distância.

 

Cantemos, pois, querido,
pisando o látego caído
do punho do amo vencido,
uma canção por ninguém ainda cantada:
(Enflorece plantada a vela lança)
uma úmida canção estendida
(Em nossas mãos arde a esperança)
de tua garganta em sombras, e bem além da vida
(A aurora é lenta, mas avança)
ao meu clarim terrestre de cobre ensanguentado!

 


Livro: Antologia Poética
Autor: Nicolás Guillén
Seleção e Adaptação: Ary de Andrade
Editora: Leitura