ECOCULTURA PELA ETNOMEDICINA INDÍGENA 

 

Segundo história de minha família, pela voz da avó postiça (na verdade minha tia, em lugar da índia progenitora morta no parto de meu pai caboco), quando a avó desta última se referia a alguma coisa de grande antiguidade, ela enunciava “no tempo da vela de jupati”… O tempo da vela de jupati, pois, para a civilização amazônica é o tempo da Cobragrande: configuração da serpente cósmica que engole a própria cauda e na mitologia indígena está suspensa acima das nuvens, junto às estrelas; por um cinturão feito de asas de borboleta. A insustentável leveza do Mito abala nossa pífia racionalidade pela subversiva poesia. O porquê eu não sei, só sei que foi assim; como diria o personagem mitômano de Ariano Suassuna.

 

A biologia da Anaconda em extinção com seu ecossistema perdido em favor do garimpo se desintegra no espaço territorial indígena, todavia sobrevive o espírito da cobra grande material mãe dos homens na arte do trançado em 1001 detalhes da pele de Tuluperê (cobragrande mítica), pela evolução do pensamento complexo e da ecocultura por este inventada em relação dialética carnal com a natureza da qual é parte. Prova de que a matéria-prima tem espiritualidades supimpas.

 

Tal qual se pode ver na arquitetura da grande casa coletiva dos povos do Tumuc-Humac, no disco armorial chamado “marauna”; mapa astral no topo do esteio central da maloca: simples imitação do mundo na aldeia extraída do mundo maior que é a grande floresta, com seus diferentes territórios na fronteira do real com o imaginário.

 

Tempo pré-histórico que se perde na noite do tempo da invenção do rio Babel ou das Amazonas (aliás, Uêne dos aruacos ou Paraná-Uaçu dos tupis). Já se deve saber que a antiga Cultura Marajoara, de 1500 anos de idade, constitui a primeira ecocultura amazônica, arte primeva do Brasil pré-colombiano. Por conseguinte, não é estranho o fato desta notável civilização equatorial, em 1972, ter tido destaque na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio de Janeiro, graças a Jorge Amado que recepcionou a obra do “índio sutil”, mestiço de corpo e alma, Dalcídio Jurandir atribuindo a ele o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra, primeiro e único romancista amazônico assim distinguido no panorama nacional.

 

O segundo Machado de Assis para autor amazônida foi, merecidamente, para o filósofo paraense Benedito Nunes. Caminhamos assim, pelo arco das gerações, desde a primeira noite do mundo para as luzes amanhecentes do maior país amazônico do mundo, Brasil. Outrora, para a massagada tapuia, chamado terra do Arapari (constelação do Cruzeiro do Sul), das migrações do Caribe para as Guianas no tempo da vela de Jupati.

 

Por extraordinária coincidência, no mesmo ano de 1972, trágico para a civilização brasileira pela censura e ditadura militar na América do Sul, com triste destaque do nosso Brasil (“para onde o Brasil se incline vai se inclinar a América Latina” – Henry Kissinger), às margens plácidas do Arari – berço da Cultura Marajoara deixada entre chuvas e esquecimento pelos poderes da República -, o padre insubmisso ítalo-marajoara Giovanni Gallo, só com seu engenho próprio e relutante ajuda da comunidade, inventava O Nosso Museu do Marajó.

 

Um pequeno grande passo numa estrada de mil léguas para renascimento da velha Cultura Marajoara. A partir de “cacos de índio” (fragmentos de cerâmica, achados a esmo ao pé de sítios arqueológicos arrombados e saqueados para fins de contrabando) o milagre de uma inesperada “ressurreição”.

 

O Brasil brasileiro precisa conhecer o Marajó profundo que — apesar de tudo –, ainda resiste à dominação cultural com a resiliência do tempo da vela de jupati e se alberga agora no sui generis museu do Gallo preparando-o, a par da criação da futura Universidade Federal do Marajó, a fim de receber repatriamento da cerâmica levada da ilha para o exterior deixando a pobre gente a ver navios.

 

Desde 1937, ano de fundação do IPHAN com sua opção preferencial pelo barroco colonial, enquanto o autor de “Marajó” (“primeiro romance sociológico brasileiro”, no parecer de Vicente Salles), devido à perseguição política da polícia fascista da ditadura Vargas; se achava preso na famigerada cadeia São José, hoje felizmente polo joalheiro e de artesanato São José Liberto; a diretora do Museu Nacional Heloísa Alberto Torres, depois de viajar à ilha do Marajó, publicava artigo de fundamental importância à preservação de sítios arqueológicos pré-colombianos e ao estudo da Cultura Marajoara.

 

Artigo este que continua atual, depois de setenta e sete anos passados, e se transforma com o andar do tempo da República Federativa em libelo contra a indiferença da intelligentsia brasileira a respeito deste patrimônio da humanidade, sob soberania do Brasil. De lá pra cá quase nada foi feito para remediar o absurdo. Não que a gente tenha esmorecido e ficado sentada calada na beira do rio, pois até já foi pedida criação da Reserva da Biosfera do Marajó, esperança de socorro pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO).

 

O descaso nacional, estadual e municipal a respeito deste ímpar patrimônio do bravo Povo Brasileiro é um fato extraordinário em contrate como o tanto que se fala de Amazônia em prosa e verso. Pensadores de renome internacional como Ignacy Sachs, por exemplo, com sua empolgante teoria das oito dimensões da sustentabilidade (social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica, política nacional (democracia) e política internacional) pregam uma certa ecocivilização amazônica. Capaz, talvez, de servir de espelho ao resto do mundo.

 

Grande utopia, certamente. Mas, a sonhada ecocivilização amazônica deveria ser inventada da estaca zero, para quem exatamente? Ou, melhor, será ressuscitar a antiga ecocivilização de 1500 anos por seus próprios herdeiros, principalmente, para as futuras gerações cabocas?

 

Ressuscitar uma perdida civilização neotropical das terras baixas da América do Sul, a modo da mítica Fênix, naturalmente, a renascer das cinzas da Floresta Amazônica queimada para dar pasto aos bois, campo a latifundiários forasteiros e trabalho escravo a migrantes sem-terra.

 

A fim de demarcar o caminho da redenção, como farol do desenvolvimento socioambiental sustentável um extraordinário ecomuseu a par da excelência de uma universidade para o futuro do Trópico Úmido planetário, donde a resiliência de “cacos de índio” há de dar novos rebentos.

 

Hoje, miseravelmente, o Marajó velho de guerra sofre com a desgraça de um indecente IDH de ignorância e fome ao abandono cruel do modo de vida da “Criaturada grande de Dalcídio” (populações tradicionais). Esta marginalizada gente ribeirinha descendente dos antigos povos Nheengaíbas das ilhas, dos quais o padre grande Antonio Vieira falou com esperança e graça na inventiva “História do Futuro”, manifesto sebastiano de sua utopia evangelizadora a cabo da missão entre índios da Amazônia e introdução à heresia judaizante condenada pelo Santo Ofício sob título seráfico de “De Regno Christi in terris consummato” ou “Clavis Prophetarum”. Arte retórica para concretude moderna de antigos sonhos proféticos na, até agora, impossível paz entre potentados cristãos, judeus e islâmicos entre os povos da Terra.

 

UM PATRIMÔNIO MILENAR

Acredito que o fundamental na Educação Indígena seja a etnomedicina ameríndia. Velho saber dos pajés que o sábio Ermano Stradelli, com veneração e amor, fez coletânea honesta. Sem o devido conhecimento farmacopédico tradicional, sob salvaguardas reconhecidas, novos professores e doutores índios serão quase inúteis a seus povos como coleções de cerâmica marajoara fora de contexto em museus estrangeiros. Templos da cultura mundial onde somente um ou dois ilustres catedráticos fazem amostra a privilegiados visitantes, em maior parte entediados de contemplar saques culturais de colônias distantes.

 

Seria uma pena conservar relíquias e perder o espírito da antiguidade das coisas que, para progresso da ciência moderna, reclama a prudência de Platão com referência ao saber dos pré-socráticos: um comportamento orientado para obtenção e preservação da saúde através de práticas culturais dos Povos ameríndios. Qual a ética de combate à pirataria de marcas industriais de primeiro mundo em contraste à biopirataria de recursos naturais e culturais de terceiro e quarto mundos?

 

Todavia, elementos primordiais não constituem uma ciência conforme conceitos modernos, algo como estrutura idealmente definida. Mas, tampouco a etnomedicina não é um monte de conhecimentos tirados de experiências, tradições ou descobrimentos apenas reunidos pela identidade do sujeito que os produziu. São, na verdade, elementos dos quais é possível construir proposições coerentes ou não, para desenvolver prescrições mais ou menos exatas, elaborar novas teorias. Esses professores e doutores índios devem ser vistos e respeitados como curadores de um patrimônio valioso, a etnomedicina. Para isto capacitados a compreender e criticar o próprio sistema, tanto que a sociedade global envolvente. Assim mesmo, as sociedades minoritárias em evolução permanente, através de seus zeladores, não podem jamais perder de vista a antiguidade geral do vasto mundo de todos.

 

O saber médico dos povos indígenas está fundado sobre elementos empíricos, mágicos, míticos religiosos e racionais sendo especial a influência ideológica da catequese católica e, mais recente, protestante. Enunciados, conceitos e práticas deste saber estão em boa parte, em oposição à ideologia dominante da formação social da sociedade global.

 

A etnomedicina, de modo nenhum, deve ser vista como panaceia que a cobiça dos “brancos”, a exemplo de drogas exóticas que se tornaram vícios devastadores, queira dela se apropriar como muitas vezes já aconteceu. Pois, generalizações sobre práticas médicas ameríndias ou de qualquer outra região do planeta, apesar de interessantes na perspectiva de estudos teóricos, são perigosas porque, existem especificidades em cada sistema de crenças mítico-religiosas ou práticas culturais que podem restar ocultas e enganosas intencionalmente ou não.

 

Por outra parte, comparações são às vezes como atalhos de pesquisa e permitem ampliar conhecimentos, organizando-os sob forma de teoria. Saberes aparentemente caóticos, embora reconhecidos, especialmente quanto ao uso de plantas, técnicas de êxtase ou mesmo conjunto de práticas, ditas primitivas, que possibilitam tratamento e cura de doenças, conhecer e controlar estados de consciência, emoções ou modificar sentimentos como práticas de saúde mental, se revelam importantes para as duas partes. Com frequência, entretanto, comunidades tradicionais se queixam de pesquisadores que não compartilham com seus informantes conclusões de trabalho, lesando desta maneira o diálogo que deveria existir entre ciência e saber tradicional.

 

Segundo Lévi-Straus, 1976, o “pensamento selvagem” se diferencia do conhecimento científico por ser analógico, baseado na intuição sensível, inteligência emocional; em lugar da percepção e da imaginação. Um se aproximando da bricolagem e poesia (inspiração artística) e outro se apropriando da lógica de contradições. A tentativa em transformar índios em cientistas ocidentalizados e pesquisadores em quase indígenas resulta complicada, quando não frustrante às vezes. O importante é que cada um, na relação colaborativa entre sistemas diferentes, entenda a situação do outro e que procure interpretar essas diferenças da melhor maneira possível.

 

A diversidade de sistemas etnomédicos exige compreender especificidades que adquirem função de adaptação em áreas ecológicas, grupos linguísticos e níveis de tecnologia resultantes do processo histórico da alteridade do conhecimento. Assim as diversas conquistas de cada povo ou etnia podem ser integrados a práticas semelhantes, tornado-se mais compreensíveis às razões de sua permanência ou extinção.

 

No livro “Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos Índios Brasileiros” (1844), de von Martius, com todo preconceito do século XIX, ele observa que o médico chamado pajé, em língua tupi; apesar de não ser doutor, nem mestre ou professor, possui mais poder e influência na comunidade local que todos seus congêneres europeus. Explica o fenômeno como resultado da suposta “ignorância” dos nativos. No seu entender, a medicina indígena é comparável à magia e feitiçaria e ao xamanismo dos nômades asiáticos.

 

Martius compara o pajé, ao sacerdote, profeta e adivinho, o zelador de coisas sagradas, conselheiro e legislador. Sempre um indivíduo de influência na sociedade indígena, que se distingue pelo espírito de observação, astúcia e labor, notando que esse mister, às vezes, está nas mãos de mulheres idosas. Seja como for, este homem geralmente idoso ou mulher velha, é depositário de conhecimentos tradicionais que o torna aos olhos da comunidade como um bem patrimonial notável, donde a transmisão de saberes de mestre a aprendiz é sumamente necessária.

 

Em vários momentos de sua obra, Martius faz referência a um culto ou saber desaparecido de modo semelhante aos xamãs siberianos. Declara-se pessimista quanto às possibilidades da “raça” ameríndia em achar solução de suas demandas de saúde por recursos próprios, ou face a sua condição social “inferior” diante da potência industrial da ciência médica europeia. Reconhecendo, porém, o vigor, constituição robusta e longevidade dos índios, sobretudo antes do contato com a civilização. Não fala de nenhuma doença da época como exclusivamente indígena.

 

Já a “História geral da medicina brasileira”, de Santos Filho, relata que no século XVI os indígenas brasileiros acreditavam que as doenças eram causadas por seres sobrenaturais, astros, clima, maldições ou sortilégios. O tratamento comum era baseado flora. Daí vem a copiosa farmacopeia das plantas. O conhecimento dos indígenas sobre propriedades medicinais da flora foi mantido graças a anotações de missionários, barbeiros-cirurgiões e barbeiros e a tradição oral. Os indígenas recorriam a vários recursos como medicamentos: sangue humano ou de animais (reconstituinte), saliva (cicatrizante), urina (excitante e vomitiva), cabeça ou cauda de cobras e gordura de onça e outros animais. Bicos, garras, chifres, ossos, cabelos e sapos eram calcinados e pulverizados. Os remédios assim eram reduzidos a pó entre duas pedras e depois dissolvidos em água ou bebida. Emplastros feitos com o mesmo vegetal para uso interno eram aplicadas sobre partes externas afetadas. Graças ao conhecimento venenos na fabricação do “curare”, usado em setas, flechas e lanças na guerra ou na caça; pôde a medicina moderna aprender com os índios aplicação de poderosos anestésicos. Também do conhecimento de vegetais como o timbó para matar peixes, a indústria moderna chegou ao DDT e outros pesticidas que hoje causam tantos males.

 

 

 

 

 José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com