Ver o ônibus apontar ao final da avenida foi, para o Agenor, um misto de alívio e tortura. Queria chegar logo ao Centro, mas, certamente, não ficou contente em levantar do banco do ponto para percorrer os longos dois metros até a sarjeta e subir no veículo.

      Quando se tem oitenta anos e se apoia em uma bengala, a vida é um desprazer contínuo.

      Os dois degraus eram estafantes. Subiu. Parou em frente ao cobrador. Agenor faz sempre questão de pagar a passagem e desembarcar pela porta de trás. Como se quisesse, a cada instante, a cada lento passo, apagar as rugas da idade e os amores da vida.

      O homem que recolhia o dinheiro das pessoas em troca de apertar o botão e destravar a roleta tinha pouco mais de trinta anos. Era dono de um bigode inusitado e dormia intensamente naquele momento. Talvez o sono fosse o fruto de uma noite complexa.

      Talvez fosse o fruto do tédio da cidade. Talvez fosse o resultado da infelicidade pelo próprio ofício. Fosse qual fosse o motivo, Agenor rapidamente se aborreceu com a cena e pôs seu velho corpo em posição ereta, apoiado na bengala, enquanto levava aquele cobrador para dentro de suas pupilas para sentir a maior raiva possível que o acaso permitiu desenvolver por um desconhecido. E assim o fez. O resultado foi um resmungo produzido pela boca, através do lábio superior – acompanhado do enrugar das olheiras – sobre o lábio inferior, posto para trás.

      Apesar de o ônibus todo assistir à cena, o cobrador respondeu com um roncar apinéico.

      Agenor queria passar a roleta. Ergueu, então, a mão esquerda, trêmula, em busca de um apoio para içar seu corpo e, assim, livrar-se da bengala e poder usá-la contra a canela do cobrador.

      Assim que os dedos se fecharam e ele teve certeza de estar seguro, levou parte das forças para seu lado direito e ergueu a bengala, deixando-a numa diagonal exata, alinhando sua ponta na direção do homem que ainda dormia.

      O ônibus parou bruscamente.

      O corpo do velho foi, por um instante, colocado fora do contato com o chão, ficando seguro apenas pela forte mão esquerda, presa no apoio. Mesmo assim, por precaução, ele colocou a bengala novamente na vertical e esperou a velocidade constante para retomar seu plano e, assim, poder passar.

      Vinte segundo depois, com ar suficiente retido nos pulmões para um grito ou uma possível discussão, aquela ponta metálica da bengala trouxe de volta, seja lá de onde for, o cobrador. Este, ao se perceber ali, dentro da pupila do velho, e sob os olhares de todos os passageiros, estendeu-lhe a mão, querendo o valor da passagem. Agenor pagou. O cobrador colocou as moedas em seu caixa. Sem contar. Simplesmente para não perder seu inimigo de vista. Ao soar do botão, a roleta foi liberada e Agenor pôde, enfim, sentar num banco próximo à porta mais ao fundo.

      Durante todo o trajeto, os dois não se perderam de vista.

      Quando o ônibus parou, na Rua Major Eduardo, Agenor se preparou para enfrentar os dois degraus com a ajuda do corrimão e da bengala. O seu pé direito ainda tentava encontrar o chão para, em seguida, chamar seu pé esquerdo, ainda dentro do ônibus, quando, nessa hora, o cobrador, que sentia um gosto estranho na garganta, morando ainda dentro da pupila do velho, mas agora pelo espelho sobre a porta, perdeu o controle de seu próprio dedo e apertou o pequenino botão, avisando o motorista para arrancar.

* Luiz Henrique Dias é dramaturgo. @LuizHDias