I

A cana doce de Málaga
dá domada, em cão ou gata:
deixam-na perto, sem medo,
quase vai dentro das casas.

É cana que nunca morde,
nem quando vê-se atacada:
não leva pulgas no pêlo
nem, entre folhas, navalha.

II

A cana doce de Málaga
dá escorrida e cabisbaixa:
naquele porte enfezado
de crianças abandonadas.

As folhas dela já nascem
murchas de cor, como a palha:
ou a farda murcha dos órfãos,
desde novas, desbotadas.

III

A cana doce de Málaga
não é mar, embora em praias:
dá sempre em pequenas poças,
restos de uma onda recuada.

Em poças, não tem do mar
a pulsação dele, nata:
sim, o torpor surdo e lasso
que se vê na água estagnada.

IV

A cana doce de Málaga
dá dócil, disciplinada:
dá em fundos de quintal
e podia dar em jarras.

Falta-lhe é a força da nossa,
criada solta em ruas, praças:
solta, à vontade do corpo,
nas praças das grandes várzeas.

João Cabral de Melo Neto – Obra Completa – Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, pág. 301.