“Enquanto despertava nossas sombras descobriu o significado de si mesma”. Assim escreveu Clarice Lispector, viajante da noite de sua angústia estranha, sobre a vertigem de beirar abismos, em que se compraz certa categoria de artistas. Às vezes é preciso beirar abismos, sobreviver a terríveis perigos, para conhecer o lado vertiginoso da alma. Só então, esquecendo, depois de abandonar os cacos do passado, sem pensar em perdas e danos, tomamos a trilha incerta — o que é promessa de perigos, mas abertura a possibilidades.

      No dizer do poeta Vicente Huidobro: “O mundo cambaleia/quando de meu passado recebo/aquilo de que preciso/para viver nas profundezas de mim mesmo/”.

       Tão estrategista é o ego, que quando pensamos poder vencê-lo um dia, é ele que pensa isto — e em sua esperteza nos engana, a sugerir que venha a sabotar a si próprio. O pensamento é seu costumeiro disfarce, que utiliza, para nos fazer enganar a nós mesmos.

       Eckart Toole assinala: “Um dia vou me libertar do ego. Quem está falando? O ego. Libertar-se dele é verdadeiramente um grande trabalho. Mas pode ser uma tarefa pequena. Basta estarmos conscientes de nossos pensamentos e de nossas emoções, à medida em que vão surgindo. Não se trata de fazer, e sim de ver com atenção. Neste sentido, é verdade que nada podemos fazer para nos libertar do ego. Quando essa mudança acontece, ou seja, quando passamos do pensamento para a consciência, uma inteligência muito maior do que a esperteza começa a agir em nossa vida”.

                                                                                         *

       Sendo, em sua vaidosura descomunal, um peru grugulejante, metido a poetastro de província, pediu licença para “usar da palavra” roufenha, feito taquara rachada, no quintal do poetariado. Queria grugulejar sozinho, apaixonado que sempre foi por escutar sua própria voz — tão estrondosamente ruidosa que desmancha roda de bêbados.

                                                                                     *

       No Brasil os artistas e escritores estão mal acostumados a viver e a serem tratados como artistas da fome. Convidados a atuar ou a dar palestras nos mais distantes lugares, vão para “dar” mesmo, uma vez que jamais lhe perguntam o preço de seu trabalho. É como se só vivessem para almoçar ou jantar, como o comedor de gilette, da sátira de Ary Toledo: “Decente, deixa eu cume uma giletezinha, pra vancê vê! Que eu num cumi nadinha inda hoje!”.

Como eternos artistas da fome, não temos direito a dar o preço de nosso trabalho, em um mercado onde tudo se compra, menos o produto dos artífices do verso, como já verberava Brecht. Mas sempre chega o tempo da decadência, em que nem para trabalhar de graça são os bardos do poetariado (membros do lumpenzinato cronificado) são solicitados.

       Alguns, caídos nas graças de governos, após anos de conformismo e cumplicidade, em que tiveram que atuar como obedientes serviçais, chegam a receber homenagens “em palácio”. Se tivessem brio na cara, e percebessem a mancada, perguntariam, como sugeriu Bertolt, o dramaturgo poeta: “Onde foi que errei?”. Para alguns “gênios da raça” as glórias, por frias, já chegam tarde. Outros vivem de cavá-las como podem, em todos os Estados da federação, onde detêm e manobram ligadas de serviçais compadres ou comadres.

       A maioria, porém, soterrada pelo esquecimento, não deixa a mínima lembrança de haver existido. Nas praças não deixarão nomes, nem serão estátuas onde pássaros farão suas titicadas. Deles se saberá que passaram, como tudo passa. Por efêmeros instantes, como o passageiro deslumbramento de fogos de artifício, refulgirão no oceano da imbecilização das consciências e em mares de novas e triunfantes mediocridades.

 Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.