Tenho o vício de observar a natureza. Presto atenção nos dias de sol, de mormaço ou de chuva. Quase sinto as mudanças das estações, mesmo no imperceptível jogo das chuvas e das secas. Conheço as brisas que antecedem as chuvaradas e a ventania que açoita o azougado agosto. O cheiro de terra molhada pelos primeiros barrufos. E os rios? Os lagos? Os riachos? Minha estima vem da infância e posso me gabar de conhecer algumas manhas desses caminhos de água. Só de olhar sei onde vivem as nações de peixes. As piabas, próximas aos barrancos. Nos poços mais fundos, fronteiriços às corredeiras, os piaus, as piaparas, as tabaranas, os pacus. Sei que não têm residência fixa, vêm e vão, um curso de escamas dentro do envelope líquido dos álveos. Aprendi por experiência própria, vadeando córregos, represas, mexendo poços, em busca dos carás, traíras, bagres, sarapós e papa-terras. Depois fui ampliando meu vocabulário de águas e bichos nas pescarias pelo rio Araguaia, seus lagos e afluentes. Era num tempo em que o Berô-Kan da gente inan ainda era lugar de piracemas, varas e bandos. Mas minha, por assim dizer, especialização, foi com o Carmo Bernardes. Só pescamos juntos uma vez, no Rio das Mortes. Seus textos e a boa prosa me ensinaram que a vida é a mesma em todos os lugares. A vida da formiga, da abelha, do menor inseto, ou do maior mamífero, tem a mesma força e fragilidade da que está eventualmente nas pessoas. Cada ofensa, a diminuta agressão a um desses seres, como aquelas dores antigas, responde no peito da gente. Quer dizer, destruindo as árvores, os animais, os rios, destrói-se tudo deles que está em nós. Ensinava o velho escriba que a natureza tinha enormes estoques de frutos e animais, ou seja, vitaminas, açúcares, gordura e proteínas. O uso racional não deixaria esgotar até a morte esses estoques. Permitia a renovação, a continuidade da vida humana e das outras espécies. Tenho aqui comigo um original de Carmo Bernardes, que não sei se chegou a ser publicado, onde ele ensina os turistas que vão ao Araguaia, as cautelas que devem tomar no contato com o rio-mãe. Suas lições eram para os barrigas-verdes. Não serviam aos magotes que acampam nas praias, desenterram os ovos dos tracajás, amarram virações e capitaris nas raízes junto aos barrancos, para refestelarem na gastronomia criminosa confidenciada nas rodas de cerveja e basófias. Esses não tem jeito. Dessa raça também são os que enchem o rio de lanchas, jetisquis, foguetes e até aviões. Esses não amam o Araguaia nem  se apiadam de seus viventes. São vanguardas da barbárie. Ou talvez reçagas, como diria o Carmo, dos sojeiros, canavieiros e boieiros que arrasam as terras em busca dos lucros, dos financiamentos malandros dos governos. Eles têm amor é ao ócio, à esbórnia e nenhum deles leva uma piaba, um tambiuzinho para o Araguaia. Comem os jurupenséns, os piauzinhos, as cachorras, as tabaranas, os pintados adolescentes e os pacus ainda pataquinhas.