(…)
amar é combater, se dois se beijam
o mundo é outro, encarnam-se os desejos,
o pensamento encarna, brotam asas
no torso curvo de um escravo, o mundo
é real, tangível, o vinho é vinho,
o pão volta a ter gosto, a água é água,
amar é combater, é abrir portas,
deixar de ser fantasma com um número
a uma prisão perpétua condenado
por um amo sem rosto;
                      

o mundo é outro
se dois se olham e se reconhecem,
amar é desnudar-se sem os nomes:
"quero ser tua puta”, são palavras
de Heloísa, mas às leis ele cedeu,
tomou-a por esposa e como prêmio
castraram-no depois;
                 
melhor o crime,
os amantes suicidas, o incesto
dos irmãos que eram como dois espelhos
de sua semelhança enamorados,
melhor comer um resto de pão tóxico,
o adultério consumado entre cinzas,
os amores ferozes, o delírio,
a hera peçonhenta, o sodomita
que na lapela leva como cravo
uma cuspida, melhor ser lanhado
pelas praças que dar voltas à nora
que bem expressa a substância da vida,
a eternidade muda em horas ocas,
os minutos são cárceres, o tempo
são moedas de cobre, merda abstrata;

 melhor a castidade, flor invisível
que talhada se agita no silêncio,
o diamante difícil dos santos
que filtra os desejos, sacia o tempo,
núpcias de quietude e movimento,
canta a solidão em sua corola,
pétala de cristal é cada hora,
o mundo das máscaras se despoja
e em seu centro, vibrante transparência,
o que chamamos Deus, o ser sem nome,
contempla-se no nada, o ser sem rosto
emerge de si mesmo, sol de sóis,
plenitude de essências e de nomes;

sigo meu desvario, quartos, ruas,
caminho a cegas pelos corredores
do tempo e subo e desço seus degraus,
suas paredes toco e não me movo,
volto onde comecei, busco teu rosto,
caminho pelas ruas de mim mesmo
sob um sol sem idade, e tu a meu lado
caminhas e me falas como um rio,
como uma espiga entre minhas mãos cresces,
como um esquilo entre minhas mãos ardes,
como mil pássaros voas, teu riso
cobriu-me de espumas, tua cabeça
é um astro pequeno entre minhas mãos,
o mundo reverdece se sorris
comendo uma laranja,

muda o mundo
se dois, vertiginosos e enlaçados,
caem sobre a grama: abaixa-se o céu
e as árvores ascendem, o espaço
só é luz e silêncio, só espaço
aberto para as águias dos olhos,
a tribo lívida das nuvens passa,
amarras rompe o corpo, a alma zarpa,
perdemos nosso nome e flutuamos
à deriva soltos entre verde e azul,
tempo total onde nada acontece
afora seu transcurso afortunado,
(…)

 

Pedra de Sol
Octavio Paz
Tradução de Horácio Costa
Editora Guanabara – edição 1988