Naquele tempo o menino ainda não desconhecia Deus. Tinha ouvido as pregações de sua mãe, a catequese das árvores e dos bichos do mato. De natural, já nascera convertido, num proselitismo doce, embalado ao colo e numa redinha improvisada: um cobertor com as duas pontas amarradas, estirado num dos pequenos cômodos do casebre. O dia amanhecia, os pássaros chilreavam, armava arapucas, atirava pedras de bodoque, o rio corria. Tudo estava certo. Bastava estender as mãos, aí estava o sol, a areia fina, a sombra do enorme jatobazeiro, a maior criatura, a mais encantada da vizinhança. Depois vinham os viventes da casa: o cachorro, o gato estirado no rabo do fogão, as cabras no terreiro, galinhas e os canários que catavam quireras no pilão. Pedaço de céu era ir abaixado, devagarzinho e colocar uma peneira sobre o pilão. Lá ficavam os bichinhos presos. Epifania: era ir retirando a peneira aos poucos e vê-los sair voando, ganhando as árvores, o azul. Naquele tempo Deus era desnecessário. Não fazia Falta. Estava em toda parte. A gente respirava Deus, falava com Ele em suas criaturas. Segurava em sua mão puxando as orelhas dos cabritinhos. Ouvia sua voz no vento, seus cochichos na chuva sobre o teto de capim. E a gente sempre dormia com Ele. A mãe dizia: Durma com Deus, meu filho. O desconhecimento de Deus só chegou mais tarde. Fora levado, como já contei, para o Taguá, antigo Campo Largo, para aprender as letras e como ser cristão. As letras foram um mistério gozozo. Também os números. Ler o que os livros diziam e poder contar as grandezas do mundo. Puro encanto. Ser cristão, porém foi difícil. Passaria por ali em poucos dias o padre missionário. Não havia um residente no povoado. A igreja estava sempre vazia, quando não era povoada pelos morcegos, corujas e algumas velhas rezadeiras. Estava sempre fechada. As devoções se faziam ao ar livre. Procissões até o alto de uma pequena elevação onde havia um cruzeiro. As mulheres cantando lamentos, os meninos em figurações simiescas. Todos levavam garrafas, quartinhas e até potes de água para regar a cruz. Pediam chuvas que quase não vinham. Outras vezes iam até o rio. A fila de penitentes levando uma imagem de São José para molhar-lhe os pés nas águas do rio. Deveriam introduzir na água do caudaloso Rio Grande apenas os pezinhos do santo. No máximo os joelhos, porque, dependendo disso, seria a gradação das chuvas, e até das enchentes. Num daqueles anos, uma beata depois de invocar o poder de Deus e a intercessão de São José e mais do Menino Jesus, deixou, descuidada, a família sagrada escapar-lhe das mãos, afundando inteiramente na corrente. Foi um ano de horror. Chuva de abismar e enchente que lavou as casas, arrastou as plantações, sacrificou animais. O prazer dos santos em ter os pés molhados com reverência se converteu em fúria pelo descuidado afogamento. Mas o pior daqueles dias foram as aulas de catecismo para a primeira comunhão. (Caro leitor, esta parte conto na próxima semana.)