Depois de uma redução, as cores locais parecem mais ser aspectos externos da literatura, circunstâncias que as formam, mas que não são seu todo. As tinturas ou cores locais, nesses romances, só os acrescentam, mas uma fenomenologia talvez pudesse dar conta de que até mesmo as cores só acrescentam à literatura quando ultrapassam a circunstância, o contingente, e passam a ser também carne, também essência da literatura. Mas como fazer com que a mera cor local ganhe status de arte? Deveríamos usar critérios tais como de técnica, criatividade e expressão para darmos conta do problema. A questão não é de  ordem vegetal, cultural ou anima. A pergunta literária é de ordem estética e é respondida no âmbito estético, não no ético, político ou social.

      Como técnica, um autor de determinada cultura, russa, por exemplo, pode inventar uma forma de contar uma história. Certamente que essa revolução não é o resultado simples e direto da cultura russa, mas do esforço ou genialidade de um Nicolai Gogol. Muito embora as cores que utilize sejam russas não é este o fato central em O Capote, por exemplo. E se não é o central, é secundário, não é o essencial. Essa literatura, mesmo sendo feita em carne russa, em sua língua e território, não é russa. É universal. O que é essencial em O Capote? A capacidade de se referir à arte de fazer literatura, com técnica, criatividade e expressão tamanhas, que praticamente criou toda ''uma literatura''. ''Todos nós saímos do Capote'', disse Dostoiévski, referindo-se aos escritores russos posteriores a Gogol.

      Mas O Capote não é mais literatura russa do que universal. É manifestação, na Rússia, de uma estrutura interna, de uma essência a que podemos captar olhando não para o frio passado pelo pobre Akaki Akakievich, não para o sofrimento de quem levou mais de um ano economizando vela para fazer um capote novo, não para o fato de ter comprado até a linha, os botões e o tecido para que o alfaiate entrasse somente com a mão-de-obra, barateando-o. As humilhações de Akaki não seriam literatura se ele não vestisse o capote e todos ao seu redor passassem a tratá-lo não como o obscuro funcionário público, mas como o ''dono do capote''. Convidado para festas, quando Akaki o deixava no saguão passava a ser um mortal entre os outros, sem que ninguém o notasse. Retira-se o mundo externo e aí está algo certamente essencial, e que podemos enxergar universalmente nos homens dentro de seus carros brilhantes, apartamentos, choupanas na África, carros de boi da Ásia etc.

      Metaforicamente, o que, escrito no Brasil, Chile, França, Rússia, Inglaterra, etc, não conseguir ultrapassar as reais fronteiras da arte (que não são geográficas, mas as da técnica, criatividade e expressão), não passam nunca a ser literatura essencial, universal. Estão do lado de cá, do lado do mundo das coisas prosaicas, são mera circunstância entre as circunstâncias. Por isso, talvez haja uma literatura que seja apenas literatura brasileira. É aquela que não tem força suficiente para ultrapassar as fronteiras técnicas, criativas e expressivas de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, João Cabral etc, autores que estão para além do território em que escrevem. Estão no mundo da literatura.

      E há algumas fracas coisas escritas que, mesmo circulando todo o planeta, o fazem por fora. É-lhes vedada, por abstenção de sua própria parte, a entrada no mundo literário, que existe além dos mapas e que garantem a universalidade do que é escrito. Foram feitas dentro  das circunstâncias e são levadas adiante por outras circunstâncias, como o poder do mercado e o gosto popular (circunstâncias máximas de uma sociedade de massas).

      Literatura colorida, algumas das coisas escritas estão saturadas de tintas e cores locais, como espécie de cosméticos, de pintura facial. Às vezes são camadas imensas de tinta que formam em seu conjunto um corpo adiposo e flácido recobrindo um esqueleto frágil, sem técnica, sem criatividade, sem expressão. Quando há uma falta a outra, e assim por diante.

      Quanto à técnica, uma redução eidética poderia mostrar que não se trata de uma técnica européia. Moretti vê o romance ou a poesia como gêneros europeus, mas com uma redução fenomenológica poderíamos entender que esses gêneros são desenvolvidos no mundo todo com a contribuição de Borges, Cortázar, Phillip Roth, João Cabral, Sándor Marai etc em seus países e tempos. E nem todos são europeus.


Literatura como expressão do sujeito transcendental

      Contra o que chama de Escola do Ressentimento – o conjunto da maioria das leituras feitas em nosso tempo, que despreza todas as hierarquizações, verticalizações, validações e valorizações – o controvertido crítico literário estadunidense Hardold Bloom pretende que haja uma essência, ou um núcleo, para toda a literatura. Identifica-o com o que chama de ''cânome ocidental''. Uma fenomenologia tentaria defender não o cânone de Bloom como essência da literatura, mas o ''sujeito transcendental'', o sujeito husserliano, próximo do cogito cartesiano, como condição de possibilidade e esfera onde se dá o fazer literário. É a solidão radical, de que somos feitos, segundo Ortega y Gasset.

      É possível uma forma de compreensão da literatura como expressão de um eu transcendental, ou seja: da literatura como resultado de uma estrutura a priori, mas que está no mundo, como pensam os fenomenólogos e existencialistas, nunca fora das circunstâncias. Ortega afirma que a vida, como realidade radical, ou seja, como única realidade possível, é condição de possibilidade e circunstância a partir da qual se pode vivenciar qualquer fenômeno, inclusive o metafísico, se ele existir. Segundo Ortega, nada há fora dessa circunstância primeira, a ''minha vida''. Mesmo depois da morte, o eu só a experimentaria, e o que pudesse existir para além dela, se estivesse vivo. Portanto essa realidade radical (com perdão da cacofonia, a vida do ''eu'', ou a ''minha vida'') me acompanhará sempre, se eu existir, e nada pode existir fora dela: claro que nem literatura.

      Esse seria o elemento primordial e verdadeira essência de todo o fazer humano, incluindo a arte. A pré-condição, portanto, para uma produção literária. Todas as vezes que o ser humano está fazendo literatura está fazendo expressão dessa sua estrutura a priori, a ''minha vida''. Também toda vez que está lendo está em contato com algo feito a partir dessa estrutura.

      Literatura, então, seria feita não a partir do mundo exterior, mas dessa estrutura a priori, desse eu em sua solidão existencial a qual nem o escritor, nem ser humano algum pode renunciar nem ultrapassar totalmente, por sua radicalidade. Sua literatura seria, então, a expressão dessa solidão dentro das outras circunstâncias a que sempre está submetido. Esta solidão é o eu, o espaço de liberdade que existe para além de todas as outras circunstâncias e que não é determinado por contingências físicas, sociais, econômicas, segundo Ortega, mas que é autônomo, se move, decide e é ''que-fazer''.

      Muito antes dos existencialistas franceses, o filósofo espanhol foi contundente em sua concepção de liberdade. Escreveu ''eu não sou meu corpo nem minha alma'' (ou psiquismo), o que quer dizer eu não sou minha pátria, nem a língua que uso agora para escrever e que está no mundo externo a mim, embora eu tenha me apropriado dela para fazer a conexão do que está dentro de mim (minha mente), com o que está fora (o mundo ao meu redor). Eu não sou negro nem branco, nem pobre, nem rico, porque eu não sou as circunstâncias, simplesmente, por mais que esteja até os olhos enfiado na pobreza ou na riqueza na pele de um branco ou negro, numa cultura ou outra. Eu sou eu e isso, não só isso, nem só eu.

      Todos esses elementos, incluindo meu psiquismo, que me condiciona de fora, as pressões psicológicas que me moldaram, não são eu, mas circunstâncias nas quais vivo e sobrevivo, contra as quais me debato e que até me sustentam. Afinal, sem circunstância, também nem eu seria, porque só sou na circunstância, embora não seja a circunstância. A contingência me oprime e me sustenta como um frágil espaço de liberdade. É como se cada um de nós, em nosso núcleo, fôssemos ínfimos espaços de liberdade, como bolhas de ar na imensa contingência que é o todo, o universo, o sistema solar, a Terra, o Brasil, o Rio Grande do Sul, a espécie humana, o indivíduo. Lá dentro tem o eu que é eu junto com tudo o que está em volta, mas que só é eu também porque está para além do que está em volta. Não fosse isso, seria objeto. A leitura de literatura que desconsidera este fato trata o homem como objeto, não como sujeito. Essa espécie de vazio, que não é vazio, mas que tem espaço para que sejamos livres (a essência), Fernando Pessoa identificou em um de seus mais bonitos versos em que diz: ''grandes e desertas são as almas''. Este é o sentido metafísico da frase de Ortega y Gasset tão famosa quanto malinterpretada: ''Yo soy yo y mis circunstancias''. Ela tem duplo significado em sua filosofia, como já sinalizou Ferrater Mora em ''Ortega y Gasset – Etapas de uma Filosofia'', também pedra fundamental de seu raciovitalismo. Um sentido faz uma crítica aos racionalistas, outro, aos idealistas. Só nos lembramos da primeira talvez por sermos hoje demais realistas. Depois do século 19, positivista e massificador, segundo George Simmel, fica cada vez mais difícil pensar como indivíduo, como o sujeito ''condenado à liberdade'' orteguiano, famoso, depois, com Sartre. Condenado pelos existencialistas, também, à solidão. E está em Sartre ainda o conceito de universal a que nos reportamos. A condição humana, por exemplo, é um universal a que todos nós pertencemos por sermos humanos, absolutamente, para além das condições e circunstâncias, das terras e dos tempos. É essa a condição de possibilidade da leitura da frase de nossa irmã Macha a Olga, escrita por Tchecov.