No ano anterior comemoram-se em todo o mundo os 110 anos de nascimento de Antonin Artaud e os 50 anos da morte de Bertolt Brecht. Dois expoentes  da cultura ocidental e do teatro universal, que estão sendo lembrados por todos que cultivam a arte e prezam a evolução do espírito humano.

      Estes dois artistas vivenciaram a mesma época em países limítrofes e – em vários momentos da história – antagônicos.  Ambos criticaram mordazmente o teatro oficial existente em seus respectivos ambientes na primeira metade do século. Foram contemporâneos, embora sem nenhum contato. Artaud morreu em 1947, Brecht em 1956. Ambos viveram duas grandes guerras e presenciaram a degeneração do convívio humano em proporções até então inimagináveis, e reagiram a elas de maneira distinta, como são distintas também suas respectivas concepções de vida e de teatro.

      Um vê nos grande conflitos humanos a atuação de forças cósmicas; o outro, de forças sociais; e expressam tais perspectivas em suas criações teatrais. Ambos, enfim, viveram intensamente a atividade teatral, embora Artaud tenha dirigido algumas poucas peças em toda sua vida, ao contrário de Brecht, que dedicou quase todo o seu tempo à prática do teatro, fosse encenando ou criando, fosse escrevendo ou desenvolvendo teorias. Como se vê, Brecht exercitou no palco as suas idéias, compartilhando-as com seus contemporâneos, sempre em busca da transformação do homem e de suas relações sociais. Artaud, por outro lado,  praticou o teatro quase que unicamente em si mesmo, expressando-o em alguns poucos textos esparsos de maneira arrojada, decidida, escatológica e universal. Ambos lutaram contra a hegemonia ditatorial da palavra e postularam uma linguagem abertamente teatral, uma “fala” característica do palco.

      Como toda linguagem está condicionada por aquilo que anseia exprimir, aquela desenvolvida por Brecht busca a precisão, a concisão e a eficácia comunicativa, explora o humor e enfatiza a beleza. Artaud exalta a entrega às forças naturais primitivas, o rompimento das amarras sociais e almeja atingir as dimensões mais profundas do espírito, provocando o encanto e o fascínio. Enquanto Brecht procura explicar e revelar a atividade do ator com conceitos objetivos, quase científicos, Artaud faz uso de termos abstratos e ambíguos, tais como Guerreiro, Duplo, Peste, Crueldade, colocando no palco não mais temas psicológicos ou sociais, mas míticos e cósmicos.

      Sem dúvida, não vamos resumir a intensidade e a influência do fazer teatral de cada um deles, em meia dúzia de frases, pois sabemos que todo grande autor possui mananciais ainda inexplorados. Brecht era um homem  prático, que pregava a lucidez e a transformação social, legando à humanidade alguns dos textos mais significativos da dramaturgia universal, ao lado de poemas, teorias, críticas, roteiros, análises, romances, contos e artigos sobre os mais variados temas. Artaud foi um vate, um visionário, que dialogava com as forças inconscientes e pretendia resgatar o poder primitivo e transformador  do teatro. Passou parte de sua vida em hospícios (locais talvez mais sadios que a louca realidade, sobretudo de 1937 a 1946); conviveu alguns meses com os índios Tarahumaras no México, onde teve contato com os ritos do peyote e pôde vivenciar o esplendor da vida mergulhada no Absoluto e integrada às forças da Natureza.

      Ambos, contudo, acreditaram que a função do teatro era “fazer pensar”, levar o público a vivenciar e a considerar novas possibilidades de existência, através de uma linguagem elaborada, viva e inovadora. Ao mesmo tempo que rejeitavam as formas teatrais então convencionais, eles almejavam  revolucionar o convívio social, retomando tradições ocidentais instigadoras e sendo fortemente influenciados pelo teatro oriental. Artaud afirmou: “ligar o teatro à possibilidade de expressão pelas formas, e de tudo que houver em matéria de gestos, ruídos, cores, plasticidade etc., é devolvê-lo à sua primitiva  destinação, é recolocá-lo em seu aspecto religioso e metafísico, é reconciliá-lo com o Universo.”

      A contribuição mais notória de Artaud para a evolução da arte teatral é, de qualquer modo, a reivindicação e o vislumbre de uma linguagem puramente teatral, não mais dominada pela palavra, mas pelo gesto, pela plasticidade e pelos signos de intenso apelo inconsciente. Aspectos exclusivamente psicológicos perdem a importância e “não se trata de saber se a linguagem física do teatro é capaz de chegar às mesmas resoluções  psicológicas que a linguagem das palavras, se consegue expressar sentimentos e paixões tão bem quanto as palavras, mas de saber se não existem no domínio do pensamento  e da inteligência atitudes que as palavras são incapazes de apreender e que os gestos e tudo aquilo que participa da linguagem no espaço conseguem captar com mais precisão do que elas”.

      Suas descrições do teatro ideal são virulentas, poéticas e pulsivamente emotivas, por vezes bombásticas e concludentes. A sua premência de se expressar e a sua rejeição do abuso predominante e excessivo das palavras, leva-o à impossibilidade de compartilhar suas idéias com seus contemporâneos, e ao vazio: “Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo. A expressão verdadeira oculta aquilo que manifesta”. Desse modo, em sua não definição, a linguagem concreta, espacial e física do teatro, “faz surgir a idéia de uma certa poesia no espaço que se confunde com a bruxaria”. E conclui: “o autor que usa exclusivamente palavras escritas não tem mais lugar e deve abrir espaço aos especialistas dessa bruxaria objetiva e animada”. Além disso, “é preciso acabar com essa idéia de obras-primas reservadas a uma auto-intitulada  elite, e que a massa não entende”.

      Neste sentido, apesar das diferenças, tanto Brecht quanto Artaud, atacam a falsa noção de sublime e da idolatria das “obras-primas imobilizadas”, características do teatro e do conformismo pequeno-burguês.

      Em sua busca de um teatro que despertasse os nervos e o coração dos homens, Artaud chega à formulação de uma concepção teatral que insufle miticamente as massas, levando-as a acreditar nos sonhos apresentados no palco – mas como sonhos de fato e não como “decalque da realidade” – estimulando no público a “liberdade mágica do sonho” marcada pelo terror e pela crueldade.

      Artaud é categórico: “farei aquilo com que sonhei, ou não farei nada”.

      Recorrendo às imagens presentes nas pinturas de Grünewald, Brueguel, Goya e Bosch, Artaud vislumbra um espetáculo ideal, composto por verdadeiras tentações, capaz de extrair as forças primitivas presentes nos mitos e no inconsciente das massas, denominando-o Teatro da Crueldade. Nele, tal como nos ritos e na magia, o público deve ser levado ao delírio e ao êxtase, vivenciando a totalidade física e espiritual do Ser.

      A crueldade intrínseca ao verdadeiro teatro é assim justificada por ele: “Sem um elemento de crueldade na base de todo espetáculo, o teatro não é possível. No estado de degenerescência  em que nos encontramos, é através da pele que faremos a metafísica penetrar nos espíritos”.  Ele pressupõe, portanto, o rigor implacável, a determinação absoluta e um apetite cego pela vida. Embora o Teatro da Crueldade não passe de um manifesto – fruto de uma época, aliás, repleta de manifestos (surrealista, dadaísta, modernista, comunista, antropofágico etc.) – a sua impetuosidade e o seu tom arrebatador influenciaram figuras expressivas do teatro mundial neste século: de Jean-Louis Barrault a Julian Beck, de Grotowski a José Celso Martinez Correa, todos empenhados na criação de um teatro vivo, pobre, despojado, essencial e ritualístico.

      Naturalmente, um manifesto rico em imagens ardorosas e metáforas exaltadas prestou-se também a muitos equívocos, à medida em que tais confusões, analogias e abstrações simbólicas transcendentais deram margem a interpretações contraditórias e, por vezes, excludentes. De qualquer modo, os seus ingredientes básicos são a ruptura, a criação de uma linguagem gestual comunicativa e a primazia da encenação em detrimento do uso estático da palavra.

      De resto, algo evidentemente comum a Brecht e a Artaud é a visão de que o teatro deveria abandonar a sua função meramente decorativa e culinária para tornar-se essencial, popular, humano e transformador. Ambos sonharam conscientemente o mundo através da arte teatral; um através da atividade teórico-prática incessante; o outro com visões alucinatórias profundas e arquetípicas.

      Não sei o que Artaud pensaria ao ver em nossos dias o fascínio exercido pela televisão e pela imagem em geral nas massas; ao ver o desdobramento da estética nazista na publicidade e na produção dos grandes eventos modernos; a invenção intermitente e acelerada de ídolos, imposta pela indústria do entretenimento, e de imagens que se caracterizam psicologicamente como os mitos do homem moderno; ao ver o mundo de aparências que nos rodeia e nos seduz, que esvazia o sentido de todos os gestos e banaliza as grandes emoções humanas… Grotowski, por exemplo, preferiu isolar-se numa cidade do interior da Itália, a abandonar a produção de espetáculos  utilizando o teatro a partir de então apenas enquanto meio para a educação do homem. Talvez porque no decorrer da História, as pretensões mirabolantes, mágicas e hipnóticas de Artaud tenham se esgotado em si mesmas, pois a sensibilidade do espectador moderno já está devidamente calejada pela desordem e pelas aberrações desumanas reinantes em nossa sociedade e pela pirotecnia sensacionalista dos meios de comunicação.

      Para Brecht, por sua vez, “a palavra do poeta não tem de ser mais sagrada do que verdadeira, pois o teatro não está a serviço do poeta, mas da sociedade”.

      Artaud é quase desconhecido no Brasil, enquanto Brecht foi  um dos autores mais lidos, montados e discutidos em toda a América Latina, sobretudo nas décadas de sessenta, setenta e oitenta.  A Editora Paz e Terra publicou recentemente em português todos os seus textos teatrais em doze volumes. A principal obra de Artaud “O Teatro e Seu Duplo” também pode ser encontrada em qualquer livraria. Que esta data sirva então como pretexto para retomarmos ou conhecermos as idéias sempre instigantes e vivas destes dois símbolos do teatro moderno.