O Seminário Pensamento Radical de Clóvis Moura: nos 10 anos de sua morte, ocorrido no sábado, na tarde de 22 de março, no Centro Cultural São Paulo, foi uma oportunidade para reunir “discípulos” do autor que se confraternizaram em torno das ideias que dirigem o Movimento de Negros e Negras no Brasil. Como todos observaram, Moura teria gostado muito de saber que sua obra está no lugar onde ele sempre quis: entre as pessoas mais simples, sendo praticada e multiplicada para as próximas gerações.
O auditório do Centro Cultural Vergueiro lotou sua capacidade, com jovens espalhados pelo chão e dezenas de participantes na parte externa gritando para o palestrante falar mais alto. Os exemplares da 5ª. edição de Rebeliões da Senzala esgotaram-se antes da demanda. Antes de começar o coquetel de lançamento, chegava quem quisesse o livro e não havia mais para vender. Indícios inegáveis de sucesso de um evento celebrativo da memória de Clóvis Moura, dez anos depois de sua morte. Uma dica valiosa para propagar homenagens similares pelo país.
Os palestrantes, por sua vez, apresentaram as ideias que mais eternizam o legado de Moura, ao se tornarem referência para a luta social e para a compreensão da sociedade brasileira. Mais do que isso, no entanto, foram os relatos confessionais de amizade e profundo carinho que todos tinham pela pessoa de Clóvis Moura, um homem que conseguia surpreender com a humildade espontânea do intelectual sempre disponível para compartilhar suas ideias.
As mesas foram compostas por pessoas muito próximas de Moura, como sua filha e historiadora Soraya Moura, o antropólogo e professor da USP Kabengele Munanga, e o jornalista José Carlos Ruy. Além de conhecerem profundamente a obra do autor em sua gênese, todos podem falar do homem pela convivência que tiveram. Em seguida, o debate discutiu mais propriamente as ideias que constituem a estratégia do Movimento Negro no Brasil, ao reunir Edson França (presidente da Unegro), Sueli Carneiro (diretora do Geledés), Maurício Pestana (cartunista e diretor executivo da revista Raça) e Olívia Santana (secretária nacional antiracista – PCdoB).

O presidente da Fundação Maurício Grabois, Adalberto Monteiro, destacou a singularidade de Moura, ao apontá-lo como “intelectual raro, pensador fecundo e criterioso das raízes da opressão, além de cidadão engajado nas lutas do seu tempo”. Para ele, seu texto continua sendo uma análise atualíssima das relações de dominação ideológica baseada no racismo. “O racismo só perdura na história, porque é uma ideologia de dominação, de uma raça sobre outras, de uma classe sobre outra”, afirmou Monteiro, lembrando que, em épocas de crise econômica, como a atual, avançam a xenofobia, o ódio a imigrantes e o neonazismo, confirmando esta tese.
“O PCdoB tem justificado orgulho de tê-lo tido como membro de suas fileiras”, disse. Monteiro lembrou que a historiadora Soraya Moura, filha de Clóvis, narra um episódio de infância, quando em dezembro de 1976 viu a rara ocasião em que o pai chorou ao saber da morte de camaradas na Chacina da Lapa. Pedro Pomar, assassinado pelos militares naquela ocasião, era conhecido por ela como tio Mário.
Adalberto menciona ainda o modo como Moura antevia, já em 1994, uma mudança na polaridade política internacional, com o avanço de países como os BRICS, em que as raças “não-brancas” que habitam estas áreas espoliadas do mundo, referindo-se aos países colonizados por europeus, ganhariam novo relevo na hegemonia política e econômica mundial.

A secretária nacional Contra a Discriminação Racial do PCdoB, Olívia Santana, revelou como o contato com os trabalhos de Moura contribuíram para a formação política sua e de tantos outros lutadores. “Passamos a entender que as relações raciais são elemento fundamental para entender o Brasil e o enfrentamento ao racismo como elemento estratégico na luta contra as desigualdades de classe”, afirmou.
O historiador Augusto Buonicore coordenou a primeira mesa, lembrando a dificuldade de Moura em publicar o primeiro livro. “Clóvis Moura constatou que a luta negra permeava toda a história e todo o país.
Além de se envolver em todas lutas sociais do Brasil, encoberta pela historia oficial. Que o quilombo era a regra. Que a resistência era a regra”, disse, lembrando que Bernardo Joffily chegou a montar um impressionante mapa dos quilombos a partir da obra de Moura.

O fato de ter sido um intelectual independente da academia dificultou sua assimilação, membro tendo escrito uma obra tão impactante. Rebeliões da Senzala acabou sendo publicado por uma editora secundaria, a Zumbi, quando houve rejeição de editoras maiores. “Mesmo sendo um clássico, a maioria das editoras recusaram fazer uma segunda edição no Brasil”, destaca Buonicore, revelando a profunda indiferença com o tema das relações raciais presente no mundo editorial e acadêmico brasileiro.
Relato afetivo
Era inevitável que Soraya Moura fizesse um relato afetivo sobre o pensamento do pai. Ela contou como era intrigante que um menino de Juazeiro, sertão da Bahia, de família meio alemã e negra, aos 26 anos já avançasse no interesse em pensar a questão do negro no Brasil. Ela observa como conviviam, lado a lado, a rigidez intelectual metodológica e a afetividade de quem dedicava a mesma atenção generosa com um acadêmico experimentado ou com um jovem estudante. “A academia não era o que o movia. Ele sempre quis que sua obra estivesse nos movimentos sociais, junto aos jovens e os que pensam o futuro. O conhecimento só tem uma função: ou transforma a vida das pessoas ou é diletantismo que fica nas prateleiras”.

Para Soraya, o pensamento de seu pai está junto das pessoas que ele sempre quis estar e transformando vidas e trazendo consciência. Como depositária da obra preciosa de Moura, Soraya torce para que a reedição de Rebeliões da Senzala, obra seminal do autor, sirva para que outras obras ganhem o mesmo relevo. Soraya percebe que, independente da academia e de grandes esquemas de marketing, sua obra continua gerando muito interesse. Ela citou o pai, ao dizer que “os vencidos, mesmo derrotados, são os vencedores da história, pois são eles que, mesmo derrotados, estabelecem as mudanças”.
Marxismo abrasileirado
Amigo íntimo de Moura, José Carlos Ruy trazia a voz embargada pela emoção das homenagens. Desde 1975, quando ainda era um “menino comunista metido a besta”, já ouvia de Moura que temos que transformar o pensamento em arma da revolução. Para Ruy, que como jornalista defendeu a vida toda os princípios do socialismo, foi um aprendizado ver que Moura escrevia para que a pessoa mais simples entendesse o que estava ali. “Ele não se dirigia apenas aos sabidões, nem menosprezaVA a inteligência das pessoas mais simples”, afirmou, ressaltando que, apesar das críticas à academia e sua liturgia, guardava respeito com o papel dessa instituição.
“Todas as pessoas têm a mesma capacidade de entender o que se diz de forma compreensível”, considerava Moura. Ruy lembra que, além de escritor, ele era poeta e se beneficiava disso para escrever com uma preocupação com a linguagem. Do lado do relato afetivo, Ruy lembra que Clóvis tinha um prazer imenso de mostrar livros de poesia de autores pouco conhecidos, até então, avaliados pela qualidade de seu texto. Na opinião dele, é essa capacidade de escrever sobre coisas complexas de forma simples que estimulava não apenas o conhecimento, mas o carinho que as pessoas têm sobre a obra dele.

Para além das idiossincrasias do autor, há muita originalidade e precisão no pensamento dele para que se universalize suas ideias. Conforme vai pontuando Ruy, Moura renovou o marxismo brasileiro ao incorporar o problema racial na análise da luta de classes. “Clóvis Moura ajudou-nos a compreender que a luta de classes sempre fez parte da nossa história, pois a luta dos escravos foi uma luta de classes, e não apenas uma luta cultural, como se dizia por considerar que o negro estava atrasado frente ao avanço europeu.” A obra de Moura é um constante questionador de mitos largamente arraigados pelo racismo brasileiro. Ele mostrou em sua obra que o negro africano trazia um conhecimento que foi incorporado pelo europeu, como no caso dos mineradores, que acumularam e incorporaram a técnica africana. “A mineração do Brasil teria sido um fracasso, não fosse isso”.
Ruy destaca que há muitas manifestações da herança racista viva na sociedade brasileira, na atualidade, como foram as reações aos rolezinhos de jovens da periferia a shopping centers, em que o incômodo está relacionado com a cor daqueles jovens, aliado à sua condição de classe econômica. “A luta contra o racismo é uma luta de classes. Não se trata de dominação de uma raça sobre a outra, mas de uma classe sobre a outra”.
Ruy aponta a dificuldade que a academia e a intelectualidade, em geral, ainda tem de absorver a lógicar do pensamento de Clóvis Moura e incorporar suas categorias ao estudo sociológico. “Uma dominação teórica que não conseguiu se distanciar dos preconceitos que manifestou Caio Prado Jr.”, denucia o jornalista, citando o publisher da Editora Brasiliense, que rejeitou a publicação de Rebeliões da Senzala, por tratar-se de um estudo sobre a luta dos escravos.
Moura tinha uma percepção da escrita como trabalho e estudo “e não iluminação que vem não sei de onde”. Com isso, Ruy quer enfatizar o caráter árduo da pesquisa dele, em que tudo tinha que ser comprovável. Por isso, ao dizer que a luta escrava no Brasil não ocorreu a margem da sociedade, como sempre afirmou o pensamento hegemônico, ele foi em busca de dados concretos, por todo o país, que confirmassem a dimensão política dos quilombos e rebeliões espalhados em cada canto do Brasil. Desta forma, para além dos levantes escravos e quilombos, a participação do negro escravo nas lutas políticas que ocorreram na colônia foi confirmada e comprovada por Moura.
O escravo não era um corpo à parte, nem um bárbaro que se revoltava contra a sociedade, mas um homem dominado que luta contra a dominação. “Uma rebeldia que continua na luta dos operários e camponeses”, pontua Ruy. Segundo ele, Clóvis Moura revelou um fio vermelho que atravessa a história do Brasil. “Vermelho da rebelião, mas também do sangue dos lutadores.” Com isso, Moura “abrasileirou” o marxismo, consolidando um pensamento que ajuda a compreender a complexidade do Brasil, “a luta que a gente trava aqui”.

Ruy acredita que Moura estaria contente por uma homenagem como essa. “Não por vaidade, mas por ver como a obra dele acertou no alvo ao provocar o interesse manifestado por essa turma que está aqui”, disse, referindo-se à plateia formada por muitos jovens militantes negros e de outros movimentos, assim como estudiosos do tema.

Nós, os negros
Muito próximo como amigo de Clóvis Moura, e profundo conhecedor de sua obra, o antropólogo e professor da USP Kabengele Munanga prefere não falar como critico ou avaliador daquele trabalho intelectual. Para ele, esta é uma obra complexa ainda a espera de seus críticos e avaliadores. Kabengele preferiu homenagear um grande amigo por quem tinha muita admiração, que o influenciou a trabalhar nesta área de pesquisa das relações raciais.
Em 1976, Kabengele o conheceu num ciclo de palestras na USP, conhecido como Semana do Negro, “algo que só poderia existir no Brasil”. Foram muitas as surpresas! Num país com tamanha população negra, haver uma “semana do negro”. Diante da certeza de estar no país de maior democracia racial do mundo, ouvir Clóvis Moura denunciando a discriminação racial contra o negro no Brasil. O fato de autor usar a primeira pessoa do plural, deixando nitidamente claro ao público presente, que embora mestiço claro, se considerava negro, num país e época em que a maioria dos mestiços se consideravam brancos procurando se distanciar da discriminação sofrida pelos negros. “Algumas pessoas murmuravam incomodadas com sua ousadia”, diz Kabengele, afirmando que, à época, todo não-branco era chamado de moreno. “Até eu era chamado de moreno”, diz ele, com ironia.
Outra originalidade de Moura, segundo ele, é que o negro é visto sob todos os ângulos, não como objeto de pesquisa, mas como sujeito de uma história, contada e escrita apenas do ponto de vista da classe dominante. “Fazendo uma revisão crítica da historiografia oficial, Clóvis devolve ao negro sua verdadeira história. Uma história por muito tempo falsificada e negada pela ideologia de classes dominantes e suas elites intelectuais”, afirmou.
Segundo Kabengele, sua obra mostra como o próprio negro ocupou uma posição central no palco dos acontecimentos históricos que colocaram um fim ao escravismo brasileiro. Moura rompe com a trajetória que vai do tráfico, passando pela escravidão e terminando no abolicionismo, para analisar todas as facetas da história social, política e econômica do negro. “Ele torna nítida a dominação que explica, até hoje, as mazelas da população negra no Brasil”.
Moura recorre ao conceito de “negro”, enquanto realidade histórica de construção política e ideológica, na qual são incluídos os mestiços e todos aqueles que assumem sua ascendência africana. Desta forma, evita a noção de “raça negra”, pois não acredita na realidade da raça. “Uma noção que aproxima os mestiços da luta negra, fazendo dessa noção uma mola propulsora e alavanca da luta social no Brasil, quando todos assumirem a negritude contida no seu sangue para superar o mito da superioridade do branco e da inferioridade do negro”, sintetizou Kabengele.
O antropólogo também enfatizou o fato da obra sobre a questão do negro no Brasil ter sido ininterrupta na vida de Moura, sem desvios para outros temas. Seu último livro, Dicionário da Abolição, foi feito enquanto ele estava no hospital corrigindo as provas, às vésperas de sua morte. “Nao devemos esquecer uma pessoa dessa importância, num momento histórico como esse. Vejo que a memória de Clóvis Moura está viva, mesmo com muitos não tendo lido sua obra”, concluiu, referindo-se à dificuldade das novas gerações encontrarem seus livros nas lojas e sebos.

“Estou torcendo para ver toda a obra dele publicada com a qualidade desta quinta edição de Rebeliões da Senzala. Até o Dicionário da Abolição estava pronto e não conseguia ser publicado”, apostou Kabengele. Para derrubar qualquer dúvida sobre a dimensão intelectual de Moura, o antropólogo lembrou que ele recebeu título de notório saber, ou seja, uma titularidade acima de doutor. “Algo que permitiu, por exemplo, que ele analisasse a minha obra na universidade”.