No programa Contragolpe da TV Grabois, Manuela d’Ávila recebeu a socióloga Ana Prestes e o diplomata e ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa, Celso Amorim, para falar sobre a crise política mundial e a situação do Afeganistão. A entrevista foi uma boa oportunidade para entender as complexidades da ascensão do Talibã no país e saber por que o país ocupa um lugar central na geopolítica mundial atual.

Amorim questiona as polarizações de celebração e demonização dos radicais islâmicos naquele país, como se fossem as únicas perspectivas possíveis a partir de um olhar exótico e ocidental.

Ao comentar a derrota dos EUA e seu padrão impositivo de democracia liberal, Amorim parafraseou Gandhi que, quando perguntado sobre o que achava da civilização ocidental, disse que “seria uma boa ideia”.

Manuela, por sua vez, questiona a incompletude das análises celebrativas da derrota americana sem considerar as questões de gênero envolvidas, como se fosse possível a emancipação de uma sociedade sem a emancipação das mulheres. Amorim considera que a ONU teria um papel importante nisso, afinal a alta comissária da organização é Michelle Bachelet. Ana Prestes questiona o próprio modo como o ocidente tratou as mulheres afegãs, sem interlocução nenhuma, numa postura patriarcal e paternalista sobre elas.

O fardo do homem branco

Amorim cita Rudyard Kipling, “um poeta ideólogo do imperialismo”, que cunhou a expressão Great Game (Grande Jogo) para o Afeganistão e outras nações vizinhas, pelo lugar que ocupavam no caminho entre o Império Russo e a “jóia da coroa” britânica, a Índia, na disputa comercial. O mesmo poeta que fala em “white´s men burden” (o fardo do homem branco) para se referir à tarefa dominadora sobre povos não-brancos. Ao analisar o mapa de fronteiras, conforme aponta Amorim, dá para compreender como a região é estratégica para o isolamento do antigo Império Russo da Índia.

Na opinião dele, o Afeganistão não seria o objetivo principal dos EUA na geopolítica regional. Embora houvesse um problema real com Osama Bin Laden e a Al-Qaeda instaladas ali, o problema relevante para os americanos era a crise de confiabilidade no fornecimento de petróleo da Arábia Saudita, conforme havia setores resistentes, como a família saudita do líder terrorista. Desta forma, o principal era garantir o controle sobre o Iraque, tanto quanto estar nas fronteiras entre países como o Irã e até China.

Assim, num primeiro momento, ele acredita que Bin Laden e Al-Qaeda tiveram um papel central, embora, no processo, as coisas sejam mais complexas e ideológicas. Desta forma, os EUA querem explorar (ópio, riquezas minerais e trânsito para gasoduto), embora o “fardo do homem branco” imponha a necessidade de deixar uma contribuição para o país ao afastar o extremismo religioso do poder.

Tanto que, lembra ele, ao contrário da invasão ao Iraque, não houve contestações em relação ao Afeganistão, quando os EUA invocaram um princípio de legítima defesa, enquanto a Al-Qaeda foi reconhecida pela ONU como o primeiro movimento terrorista. Assim, a “tarefa” de Nation Building (construção de nação) foi aceita universalmente, embora ele lembre que o apelido de “túmulo de impérios” do Afeganistão devesse ter deixado as nações envolvidas desconfiadas.

A ameaça chinesa

“A saída dos americanos do Afeganistão parece realmente o fim da civilização ocidental, no sentido de querer impor pela força seus valores e interesses”, declarou Amorim. Ele citou a tragédia sem precedentes expressa nas imagens de uma mãe entregando o bebê a um soldado americano, pessoas caindo de um avião em voo ou cadáveres encontrados em outro avião. Desta forma, até a comparação plausível com a guerra do Vietnã é inadequada pelo conteúdo claramente ideológico naquele episódio. “Esse não é o caso, pois, depois que cai a Al-Qaeda, restam interesses geopolíticos e estratégicos e a tentativa de criação desse soft power [poder brando], que justifica, muitas vezes, a presença militar também”.

Encerrado esse ciclo da guerra ao terror, como fica, nesse cenário, a guerra fria de contenção da China pelos EUA? Este foi o questionamento mais ouvido por Ana Prestes, nos últimos dias. Amorim diz concordar com Ana, de que a obsessão política norte-americana é a polarização com o país asiático. Como lembrou ela, a própria disputa eleitoral entre Donald Trump e Joe Biden era sobre quem seria mais capaz de conter a China, o que reforça a saída do Afeganistão como uma derrota dos EUA para a China, principalmente pela forma como saíram do país com tudo desabando.

Os estranhamentos entre Reino Unido e EUA após o episódio revelam uma falta de coordenação na operação, assim como uma subestimação do Talibã por Biden. O principal aliado dos americanos acaba sendo crítico aos resultados de 20 anos de uma ocupação custosa para todos os envolvidos.

O ex-chanceler brasileiro ironiza ao dizer que qualquer alegação americana contra o PC chinês acaba no vazio, a partir de agora. Afinal, na invasão e controle do Afeganistão, os EUA não tiveram nenhum oposição de grande potência, tiveram uma presença militar imensa, fizeram o exército que queriam, montaram o governo e escolheram os líderes tribais que queriam, e “deu tudo errado”, como no Iraque e na Líbia, também. Isso deve reduzir a influência dos EUA.

Talibã pragmático

Até por essa polarização forçada e obsessiva com a China, Amorim observa que não faz sentido a retirada do Afeganistão, considerando a centralidade do país entre Irã e China, “conspirando para a permanência”. Tanto, que China e Rússia se apressaram a estabelecer uma “relação pragmática” com o Talibã e, até de amizade, como expressaram os chineses. A situação se complica se lembrarmos que Trump foi o primeiro a estabelecer negociações com o Talibã, contra a vontade do seu governo títere no Afeganistão. Desta forma, somente a complexidade da situação explicaria o que ocorreu.

Nem o Irã pode comemorar a situação, considerando a forte rivalidade entre sunitas e xiitas, ainda maior que entre cristãos, judeus e muçulmanos. “De todos os ângulos, há um desastre geopolítico para os EUA, um desastre humanitário para o Afeganistão e um enorme problema para o mundo todo”, diz Amorim, ressaltando a oportunidade para a ONU se manifestar sobre o assunto, embora mergulhada nos problemas do Haiti.

Independente das alegações de que o Talibã mudou, Amorim acredita que as circunstâncias são outras, conforme o grupo radical tenha passado por vinte anos de trauma e conflito e já dá sinais de uma relação mais pragmática com o mundo, mesmo não mudando sua natureza fundamentalista. Amorim mal-comparou o Talibã à “revolução permanente” de Trotsky e ao “socialismo em um só país” de Stalin, para avaliar que o grupo terá que caminhar para o “islamismo em um só país”.

Assim, como no conflito soviético, o Talibã chegou a ser reconhecido pelo Paquistão e Arábia Saudita, as conversações com a China revelam uma vontade de ser reconhecido, talvez, até pela ONU, o que demanda um comportamento diferente. Otimista, Amorim acredita que a ONU deveria aproveitar qualquer entrada para uma moderação daquele governo, que, sob qualquer nuance, pode representar centenas de milhares de vidas salvas.

O vácuo brasileiro

Por outro lado, Amorim não espera grandes iniciativas da União Europeia, de imediato, senão algum papel na recepção dos refugiados e imigrantes, já que mantém um discurso humanitário tão proclamado. Essa demanda, por sinal, abre caminho para negociações e pragmatismo, também. “Se não houver isso, o Talibã vai achar que está tudo bem e resgatar as posturas de 20 anos atrás”.

A China, sim, terá um papel importante nas negociações para que não haja interferência do Talibã entre sua minoria muçulmana.

A América Latina, por sua vez, não ocupa papel nenhum nessa nova ordem que se constrói, pelo papel apequenado que o Brasil assumiu na geopolítica. É o que lembra Manuela. Amorim, por sua vez, considera que o Brasil faz muita falta, ao citar interlocutores internacionais que se referem a isso, como “o vazio brasileiro”. Por outro lado, ele se preocupa com a postura norte-americana conforme os maiores países latinos sejam governados por políticos progressistas.

Para ele, Bolsonaro conseguiu um milagre às avessas, ao isolar e tornar pária um país que é o quinta maior do mundo, a sexta maior população, uma das dez maiores economias do mundo, sem qualquer influência sobre seu próprio continente. Manuela ainda destacou a subserviência de Bolsonaro em fazer interlocução com servidores de baixo escalão dos EUA, quando já foi protagonista de alto nível de diálogos com aquele país.

Outro episódio atual citado é o tratamento do Brasil como “pestilento” nas negociações lideradas pelo México entre oposição e governo da Venezuela. Um diálogo que envolve diversos países e lideranças exclui totalmente o principal país do continente. Ana Prestes lembra que a Venezuela foi o único país que cooperou fortemente com Manaus num momento extremamente crítico da pandemia, sem que o governo brasileiro sequer emitisse um protocolo mínimo de agradecimento.

Amorim considera que a pandemia configura um mundo diferente que o governo brasileiro recusa-se a enfrentar. Ele cita a ultrapassagem dos EUA pela China em índices de economia que ainda não haviam sido superados. A crise do modelo neoliberal também ficou clara para o mundo todo, expressa especialmente no Chile. “Ou será um mundo novo, ou não será. Porque a pandemia obriga uma nova relação entre o ser humano e a natureza e o Brasil ocuparia um lugar importante nisso.”

Assista a íntegra da entrevista com mais relatos e detalhes sobre o assunto: